terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Quem sou

Levantei âncora e zarpei a esmo
Na eminente demanda de me encontrar
Para aprender quem sou eu mesmo,
O que me é sonho, o que me faz sonhar.

Voei com asas d'águia e garra de condor
E vi-me reflexo do sol d'alegria que m'aquece.
Desci aos confins da sombra que me traz dor,
Imensa bruma da tristeza que m'entristece.

Procurei-me num pequeno búzio colorido,
Amor esquecido numa branca praia muito além,
Numa flor desse jardim que é um grande amigo.

Naveguei pelo mar ao fim do mundo até.
Acabei, cansado, a encontrar ninguém,
Um estranho alguém quem não sei quem é.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Olhei-lhe

Olhei-lhe no olhar
Verde como as ondas do mar
Azul como o céu claro
Nas noites de verão ao luar
Da primavera, fragrância do amanhecer,
Sabor a mosto do outono raro
Num inverno por acontecer.
Ao início era nada, ao fim tudo,
Chuva grada, grão miúdo
A assoalhar ao sol elevado,
Desanuvio, desassombro que senti,
Nesta rima em que me vi.
Foi sonho que tive, acordado,
Doce vida, contentamento,
Fogo que se me fez coragem
De seguir em frente, fazer viagem.
Foi-se! Mas fui livre, por um momento.

Sérgio O. Marques

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Carnaval, engano

Alegria efémera
Em líquido numa jarra
Vertida duma boca sedenta.
Libido em azul pérola,
Vício que se agarra,
Cresce, aumenta
E viaja, ébrio, de jumento
A dar ao mundo engano.
Quem o conhece, corre e ri
E por fim se queda, lamenta
Chora um lamento,
Um urro insano.
O carnaval foi logro,
Riso forjado dum mendigo,
Foi lixo lambido pelo fogo,
Reboliço sem sentido.

As máscaras caídas
Desnudam desventuras do imo.
Nas calçadas, coloridas
Fazem caretas da vida negada,
Escondida, sem tino,
Mascarada.

Eis o carnaval!
Leva-se orgia na palma
Da mão sem lhe ver o mal.
Surge a estragar o corpo
E a enganar a alma.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O melro piava

Aquele melro cantava
Lembranças da minha infância
Quando outro me acordava
Era eu ainda criança.

Era então de madrugada
Sem na rua andar ninguém
Já o outro melro piava
Como aquele piou ontem.

O melro ontem piava
Como outro um dia piou
Esse pio que me irritava
E que ontem me acalmou.

Sérgio O. Marques

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Avaliação do reino

O rei decide avaliar
Todos os súbditos habitantes
Para, com isso, determinar
Se eram cultos ou ignorantes.

Manda, entretanto, fazer
Um teste de avaliação
Com múltiplas para escolher
A resposta certa à questão.

Os avaliadores desse reino,
Já com perguntas pensadas,
Tinham estudos, tinham treino,
Em matérias variadas.

Conheciam mnemónicas,
Detergentes e sabões,
As ligações holonómicas,
Sistemas e equações.

Em álgebra eram notáveis
Como os casos da matemática
E em semântica e gramática
Eram deveras versáteis.

Sabiam de geografia,
De filosofia e de história.
Dominavam geometria...
Mas que excelente memória!

Fizeram um exame cuidado
Com lápis e esferográfica
O qual acabou editado
Numa maquina tipográfica.

O teste seguiu na sacola,
Com perguntas sem malícia.
Foi entregue na escola
Com escolta da polícia.

Começaram a escrever
Com grande convicção
Pois podiam tempo não ter
P'ra resposta à questão.

O burro era analfabeto,
O cão não sabia ler,
O boi que era tão esperto
Nem contas sabia fazer.

A vaca falar não queria,
Mugia como uma estouvada
E a burra apenas sabia
Como se faz marmelada.

A cabra queixava-se ao anho
Com ares de preocupada
Que a sua cultura apurada
Era dos tempos d'antanho.

A galinha era sabedora
Pois sabia como poucos,
Era perita, era doutora
A versar vida dos outros.

O mocho é que brilhava,
Sabia tudo de cor
E o pardal se se enganava,
Corrigia com corrector.

A raposa que era folgada
Chegava atrasada ao exame.
Justifica que, na estrada,
Se tinha dado um derrame.

Depois de tão árdua prova,
Saíam os resultados.
Eram más notas de sobra
No edital afixados.

O rei muito aflito
Com essa imensa burrice.
Irado e num só grito,
Manda chamar o arúspice.

O caso por deslindar,
Analisam com veemência
Acabando por passar
Certificados de inteligência.

A estupidez que havia
Fora banida pelo rei
E aquele que nada sabia
Era inteligente, por lei.

Eliminada pelo sistema
Com arte tão aprumada,
A ignorância já não é problema
No reino da bicharada.

Sérgio O. Marques

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Apaixonados

Tocam-se como dois beijos
Ósculo no ósculo de boca molhada
Cada toque é um sorriso, um desejo
Duma linda donzela enamorada.

Sentem-se um ao outro, encontrando
O seu par no mundo. São carícias
De sabor a mel, doces delícias
Elevando-se aos céus, cantando.

Juntaram-se na candura de um olhar,
Num mero trocar de olhos inocente
Num canto duma canção contente

E reviram-se nesse ensejo, apaixonar
Singelo dum momento que jamais se esquece
Onde nada mais há, tudo acontece.

Sérgio O. Marques

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Terá sido em vão?

Terá sido em vão
A vida que se perdeu
A tentar mover do chão
Com garra de campeão
O que nunca se moveu?

Terá sido em vão
A vida que se perdeu
A tentar-se perdoar
Com grã paz no coração
A quem não se arrependeu?

Terá sido em vão
Acordar ainda a sonhar
Um sonho de um terno amor
Enchendo a vida de cor
Perdida no meio do mar?

Terá sido em vão
Agarrar a lua com a mão
Sentando com o sol a brincar
Ganhar-lhe tanta afeição
E deixá-la fugir a voar?

Terá sido em vão
Ter-se sido sem se ter de ser
Ser-se para se poder ter
Alguém a quem chamar irmão
E finar na solidão?

Terá sido em vão tentar
E passar a vida a falhar
A procura da verdade
Chegar ao fim da idade
E acabar a começar?

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Chuva

Se vem sem graça, passa
Anunciando a desgraça
Senão esvoaça, qual garça
E cai serena, esparsa.
Quando é choro, é farsa
Se também disfarça.

Se traz brisa ou vento
E frio, é mau tempo
Se vem e rega, alento
Se enchurrada, desalento
Da fúria de um momento.

Se vem molhada, encharca
Se gelada, deixa marca
Se diluvial, abraça, abarca
Embarcam-se animais na arca.

É tempestade ou bonança
Sorriso ou triste lembrança
É secura ou esperança.

Se, com sol, arco-da-velha,
Água e fogo duma centelha.

É vida e morte, azar e sorte.


Sérgio O. Marques