sábado, 31 de maio de 2008

Ó Portugal

Ó Portugal, tu que tanto choras
O há muito que quem não te faz, o povo
Valeroso de outras épocas, outras horas.
Ó Portugal, parar, não te faz mais novo.

Vira-te para diante que o passado era,
Foi aquilo que não volta a ser, a quimera
Do que foi esquecido ou já nem é lembrado.
Canta um alegre destino, não um triste fado.

Abre os braços da beleza à primazia
Do teu valor infindo, aconchegando
No teu regaço, o cristal do bom auguro.

Ouve o silente brado desta gente, aqui
Clamando por um majestoso futuro,
Por alguém que te governe, a pensar em ti.

Sérgio O. Marques

terça-feira, 27 de maio de 2008

Viver pela verdade

O homem que vive pela verdade,
Conhece mais alto
Sente na alma a plenitude
Do céu, a humildade.
Iluminado,
Vislumbra o caminho da vida
Da escuridão à sã virtude
Há muito tempo esquecida.
É maior em seu ser,
Estar uno com o mundo,
Amar sem escolher,
Num se entregar profundo
Ao próximo, servir em submissão
E mesmo assim sorrir
A pureza de coração.
Um homem assim
Grande num amanhã porvir,
Não morrerá para o seu fim.
Viverá eternamente
Pois estará em paz plenamente.

Sérgio O. Marques

Hino à porcaria

Em tanta merda
Definha um povo
Num monte de esterco monumental.
A porcaria já mete nojo,
Já enjoa e cheira mal.
Chafurdam os porcos
Nesse degredo,
No seu próprio excremento,
É do nosso conhecimento
Pois isso já não é segredo.

(Refrão)
Às armas, às armas
Sobre a terra, sobre o mar
Às armas, às armas
Dar meia volta e pôr-se andar.
Contra os canhões
Guinchar, guinchar!

Desfralada a invicta bandeira,
Um lindo bocado de pano,
Limpa o vómito à bebedeira
Para depois se meter no cano.
Pode servir
De fralda descartável
Onde se fazer umas poias
E com espertezas saloias
Fazer-se um ar mais agradável.

(Refrão)

De enxurrada
Vem aos montes
Tanta merda em catadupa
Da assembleia onde ela é feita
Até o povo que a chupa.
Estão sempre à rasca,
Capitalistas
Por fazer mais esterquice.
Deixar o país na miséria,
Deixar o país na imundice.

(Refrão)


Esta letra foi integralmente escrita por mim. Qualquer semelhança com outra letra já existente é pura coincidência.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Mais um dia no reino

Ia,com passo apertado, o cão
Tirar a carta de pesados
Para a escola de condução.
Alguns minutos passados...
-Onde vais tão apressado?
Pergunta o porco sorridente.
-Vou á escola de condução
Que fica ali do outro lado.
-E tu? Pergunta o cão paciente,
Detendo-se firme no passeio.
-Vou comprar uma bandeira
Meia verde, meia vermelha,
Com uma bola amarela no meio.
-Para que queres o lençol?
Pergunta o cão curioso.
-Para hastear no quintal,
Pois sou muito orgulhoso
Por viver neste país.
Ao desfraldar a bandeira,
Mostro à nação o meu respeito,
De uma excelente maneira,
Segundo aquilo que se diz.
-Faz muito bem este sujeito.
Pensa o cão apreensivo
Enquanto cumprimenta a vaca
Que passa de avião.
Mal podia imaginar
Que o famigerado distintivo
Serviria para forrar a cloaca
Da latrina do suíno.
Despede-se e vai entrar
Na escola de condução.
-Tchau - acena o porco ao cão
Entrando na loja para comprar o pano
Que usaria para forrar o cano.
-Do resto, faço um tapete
Para a entrada da retrete.
Pensa o porco animado.
Mais adiante, na mesma rua
Oberva o gato malhado:
-Mas que larica tu tens.
Há já algum tempo te vejo comer
Tantos pacotes de manteiga.
-Eu só quero as embalagens...
Pia o pássaro com voz meiga
Que é levada pelo vento.
-Para fazer uma escadaria
Com uma bela esquadria
Para o meu apartamento.
Mais além, nesse momento,
Encontram-se o burro e o boi a conversar
Mano a mano na esquina
A mangar com a galinha
Que por ali vai a passar.
Entratanto, acaba de forrar
O porco a sua sentina,
Feita só para defecar.
Logo depois passa o cão
A conduzir um camião
Já com a carta na mão.
Vai com uma velocidade danada.
Leva-se uma vida agitada
No reino da bicharada.

Sérgio O. Marques

sábado, 24 de maio de 2008

Estrada da vida

Caminho por esta estrada
Solitária. Só as pedras
Me acompanham os pesados passos
Num desdouro de nada.
O que lá vem, ora são quimeras
Ora erros crassos,
Mais nada de interessante.
Quem por mim passa, ri.
Ri como um infante
Tão contente de si.
Não sabem que choro por dentro
Mas mesmo assim ririam,
É o comburente do seu alento.
As pedras caladas
Dizem-me o que quero ouvir,
O estar calado.
Se andassem, não me pisariam,
Desvairadas
Caminhariam ao meu lado.
Só eu as piso e não queria,
Não o posso evitar.
Mas não as calcaria,
Sentar-me-ia a conversar,
A meditar em nada,
A desdizer o que ficaria.
Tenho de continuar.
As árvores abraçam esta estrada
Com flores e frutos ao fim.
Além a felicidade
Espera por mim,
É verdade.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Medo de viver

O medo é da carne a fraqueza,
A sua única doença, vil sazão.
A morte, da vida é natureza,
Não o seu mal ou perdição.
Acreditar, do espírito, a pureza,
Na alma que de vida o corpo alenta,
No amor, a Palavra que é o pão
Ânimo de liberdade, acalenta.
Sorvamos essa carne, esse sangue são
Sem recear morte que nos faz temer
Dissipemos o medo de viver.

Sérgio O. Marques

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Cinco elementos

Os cinco elementos naturais
Em cada esfera reinam,
Reinos celestiais.
Cinco elementos unos habitam
As céleres esferas,
A água, o fogo, o ar,
A terra, o éter todos um só,
Uma pedra filosofal
A mover-se, qual mó,
Em correntes etéras.
Transforma um em cada qual
E cada qual em cada um de si
Metamorfoseando-se no bem
Depurando o mal,
Muta o chumbo em auri
Ouro brilhando no firmamento
Deste universo imenso,
Ao som do movimento das esferas.

Sérgio O. Marques

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Suicídio

Desliza pela face em pranto
Uma lágrima cristalina
A tecer esbelto manto.
Traz no peito imensa dor
E na mão uma flor.
Como a chuva, cristalina,
Escorre pelo semblante
Uma lágrima pura e fina
Do mais vivo diamante.
Traz na mão uma flor
Para dar ao seu amor.
Uma lágrima fina e pura
A lembrar tanta amargura.
Queda-se ali e ali vem
Dia a dia, mais ninguém.
Só, se esvai em pleno choro.
Traz na mão uma flor.
Desejava jazer morto
Como jaz o seu amor
Desde o dia aziago.
Traz um punhal afiado
E na mão uma flor
Para dar ao seu amor.
Ali expira ao seu lado,
No peito, o punhal afiado
E na mão uma flor
Bem ao pé do seu amor.

domingo, 18 de maio de 2008

Quando o burro foi ao médico

Quando o burro foi ao médico,
Vestia-se bem a rigor
Para se mostrar ao doutor.
Trazia umas calças de fazenda
E um elegante casaco sérico
De fazer grande furor.
Queixa-se com aflição:
-Senhor doutor,
É mui dura esta senda,
Não suporto esta dor.
Dói-me o tórax, a barriga,
O abdómen e o coração.
A garganta não arriba,
Nem o rim, nem o pulmão.
Na cabeça tenho dores,
Sinto nos músculos fadiga
E dos membros inferiores,
Já nem sei o que lhe diga.
Nos olhos tenho ramela,
Nos ouvidos, uma maleita
Que não sei a causa dela,
Pois que tanto cerume deita.
Returque o galeno apreensivo
Com uma ar de entendido:
- Sofrerá o senhor de apoplexia
E à mistura, hipertensão.
Juntamente com a hipotonia
Fustigam músculos e coração.
Na garganta, deve ser gripe
Nos olhos, conjuntivite
E nos ouvidos, uma otite,
Uma séria inflamação.
Diz o burro preocupado:
- Senhor doutor, estou tramado!
-Caro amigo, não se apoquente.
Diz o médico ao paciente:
-Para todo esse mal...
Falava com ostentação.
-Eis aqui uma panaceia,
Com cariz universal
Que a tudo remedeia.
É da última geração.
Continua, o médico, com atitude:
-É o elixir da juventude.
Mesmo que não o rejuvenesça,
Lhe cura essa doença.
Entrega ao burro, o doutor
Um copo cheio de líquido
Sem cheiro e sabor insípido.
-Senhor burro, beba tudo.
Diz o doutor com ar sisudo.
-Beba tudo até findar
Que isso é para o curar.
Passado um dia...
Grita o burro atarantado:
-Olha que bom, estou curado,
Sem mazela ou qualquer mágoa.
Mostrava uma grande alegria.
Tinha sido o burro sanado
Com um simples copo de água.
Foi mais uma criatura curada
No reino da bicharada.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

A segunda salvação

Quem abraça um indigente
Como se fosse um irmão,
É ser grande de coração.
Feliz de quem é clemente,
Feliz de quem vive na indulgência
E espera com paciência
A sensata justiça divina.
Será ditosa a sua sina.
Grande é o servo
Que podia ser amo,
Bem-aventurado na humildade
Pois está bem perto da verdade.
Vence do caminho a dureza,
Mas verá a sua beleza.
Denodado, quem oferece
A face, ama o inimigo
Para lá do impiedoso pungido,
Ainda assim se compadece.
Verá o esplendor,
A transcendência do amor.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Quando a vaca entra

Estava o bode no tasco
A beber vinho dum frasco
E a conversar com a cabra.
Diz o bode, apontando a porta:
-Se por ali entrar uma vaca,
Deixo-vos sem me despedir.
Mostrava-se intrigada a porca
Com o que acabava de ouvir.
O bode então continuou:
-Se a vaca vier, eu vou.
-Quiçá
A vaca não venha e eu não vá.
Quando for assim, vós já sabeis porquê.
-O quê?
Questiona a cabra apreensiva.
Naquele insante
Entra a vaca esbaforida.
O bode sai
E sem se despedir, lá vai.
Sai sem dizer mais nada.
Para trás, ficaram a porca mais a cabra
E a vaca.
Foi uma cena deveras intrigante
No reino da bicharada.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Filhos do tempo

Vós, filhos do tempo,
Mansageiros da eternidade
Conhecedores da verdade
Ouvi o meu lamento,
Levai-o para lá da velha torre,
Para lá do monte,
Para onde não mais se chore,
Muito além do horizonte
Muito mais além
Onde não mais haverá ninguém.
Limpai-me, deixai o meu peito vazio
Com o vento do vosso sopro.
Sei que sequer não sou digno
De me deplorar a vós.
Sou ser insignificante
Mas sofro,
Vivo num sofrimento atroz,
Nesta imensa aflição.
Tende de mim compaixão.

Sérgio O. Marques

Sã comunicação

Primeiro chega o verbo
Pronunciando a acção.
Ajuntou-se ao advérbio
Mudando a significação.
Numa nova circunstância
Adquirem outra substância
Em cada situação.
Seja onde, como e quando,
De que modo, forma ou estado,
Mesmo com o advérbio ficando,
Fica o verbo conjugado.
A quem dita o verbo a acção?
Ao sujeito, concerteza
Com muita determinação
E um pouco de destreza.
Depois aparece o adjectivo
Que aponta ao substantivo,
Uma certa qualificação.
Ainda se põem artigos
Definidos ou indefinidos
Junto dos substantivos
Para indicar como e quantos são.
Para tratar das relações
Entre as várias orações,
Lá estão as preposições.
Assim se firmam as bases
Naquela módica reunião
Para bem formar as frases
Duma sã comunicação.

(A continuar...) Sérgio O. Marques

domingo, 11 de maio de 2008

Minha doce amada

A minha linda amada
Sublime beleza,
Maravilha da natureza
Encanta, a encantada.

O meu belo amor
Chama ardente,
Dança impaciente
Arde com ardor.

A minha enaltecida paixão
Esbelta escultura
Duma arte futura
Entoa inspiração.

A minha doce vida
Soberba harmonia
Aroma a maresia
Marulha, minha querida.

Marulha, entretida
Com inocente euforia
Onde adormeço e me perco
De tão perto e desperto.

Sérgio O. Marques

Saber ser

Saber voar
Com pés assentes em terra
Saber lutar
Sem ter de ser em guerra
Saber ouvir
Quem espera impaciente por falar
Saber abrir
A mente que se acaba de fechar
Saber ofertar
O que de mais valioso temos
Saber libertar
Tudo aquilo que para nós queremos
Saber ver
Aquilo que está para lá de cá
Saber receber
O que vem de lá para cá
Saber precipitar
Num abraço desconhecido
Saber amar
Com a coragem de um destemido
É saber ser maior
É estar mais alto
É do frio sentir calor
É chegar ao céu num salto

Sérgio O. Marques

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Oxidação entrópica

É culpa da entropia
A fatalidade de morrer.
Esta aumenta noite e dia
Porque assim tem de ser.
Ai o oxigénio que não perdoa
Sem sentimento
A idade avança oxidante
Oxidando à toa.
Qual descontentamento
Acaba por acontecer,
A respirar, envelhecer
Por oxidação celular,
E viver sempre a respirar.
Com os neurónios ferrugentos
E sem qualquer emenda
Ficam os velhos rabugentos,
A combalir até ao fim.
É a entropia que aumenta
Mas tem mesmo de ser assim.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

A jantarada

Decidiu-se, num certo dia,
Comer, o burro, contraplacado.
Só farpas de burro se via
Por tudo quanto era lado.

O boi que mal esperava
Por devorar dinamite
Sempre que este se peidava
Atingia os cento e vinte.

O cão que era destemido,
Por aquilo que se diz,
Comia urânio empobrecido
E tirava raios X.

A comer barro a galinha
Com tanta gula de esgana
Cagava jarras em linha
Da mais fina porcelana.

O porco que era chorudo
E se fazia de amável
Comia cós de veludo
Para um cagar confortável.

A burra e a vaca bebiam
Copos com águas de rosas.
Assim sempre expeliam
Umas bufas bem cheirosas.

Por agora me despeço
Depois desta jantarada.
É só gente de dar apreço
No reino da bicharada.

Sérgio O. Marques

terça-feira, 6 de maio de 2008

Do sonho ao mito

Do sonho nasce o mito,
As fantásticas diegeses
De viagens e apoteoses
A oscular o infinito.

No sonho, o encanto
Misteriosas criaturas
Cria, estende o manto
A lautas sãs bravuras
De lutas sem guerra.
Cobre de branco a Terra
Com tanger dum canto brando.

Do mito, cresce o sonho
Ora afável, ora medonho.
Alucinam-se efemérides
Por entre dédalos e labirintos
Talhados em finas égides
Sob a essência da mente
Aquando de si insciente.

Sérgio O. Marques

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Mas que merda

Conforme o comentário que fiz no poema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, decidi escrever um "poema de merda" para quem não gosta de outra coisa.

Gente portuguesa


Cantinho de gente lerda
Que, presumida de sagaz,
Só consegue fazer merda
Para além da merda que faz.

Outra tanta mais matreira,
De emigrantes do momento
Agarram na merda estrangeira
E trazem-na portas adentro.

Olha, grande país de merda
Duma merda sem igual
A qual todo um povo degreda
Na merda de Portugal.

Uma poia mal cheirosa,
A selecção nacional
É demasiado pastosa
Para limpar com jornal.

Mas que palavra sonora
("Merda") para fazer poemas.
Come-se sempre e a toda a hora
Ainda se usa em esquemas.

Que lindas obras de arte
De artistas geniais.
É merda por toda a parte
Cagalhões e muito mais.

Toda a gente junta a cagar
De mãos dadas, no mesmo instante
Fazia-se de merda um mar
Para navegar o infante.

Para quem estas linhas ler
E se pensa pessoa esperta,
Aproveito para dizer:
"Quem não gostar, coma merda".

Um poema de merda para os merdosos. Desculpem-me os outros qualquer coisa.
Sérgio O. Marques

domingo, 4 de maio de 2008

Mulheres imorais

Libidinosas
Mulheres imorais
Vil beleza
Bebem da carne a fraqueza
Pecados mortais

Voluptuosas
Mulheres lascivas
Soberanas da libido
Amoldam divas
Doce perigo

Deliciosas
Mulheres bem feitas
Sabor sensual
São curvas perfeitas
Pecado original

Vaidosas
Mulheres ousadas
Vestem fino ouro
Ninfas namoradas
Um tesouro

Preciosas
Mulheres ladinas
Andar coleante
Torna-se delirante
Extasiantes meninas

Venenosas
Mulheres sedutoras
Musas tentadoras
Ferem o coração
Com o beijo da traição

Sérgio O. Marques

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Estas palavras

As palavras aqui apostas
Advêm de impulsos difusos
Um tanto ou quanto confusos
De cerebrais funções compostas
Sob a capa dum momento
A fluir no espaço-tempo.
E são a termodinâmica,
Química e física quântica
Que são fruto dos impulsos
Que intentam de explicar:
Uns calmos outros convulsos
Ou até de estropiar.
Outros impulsos estas lerão,
As palavras que aqui estão.
Acabam por começar
A mais impulsos gerar
No sabor doutro momento
Noutra cabeça, noutro tempo.
São os sinais da inteligência
A moer na consciência,
A falar ao coração
De quem as lê com atenção.

Sérgio O. Marques

Sistema I

A história caótica do espaço de fase
Aumenta a incerteza da trajectória
Do sistema, dinâmico, sem memória.
Assente a posição, fica o momento sem base.
Certo o momento, incerta a posição,
O estado actual perde a razão.
Quando se pretende saber o que passa
Toda a sua descrição colapsa,
A partir da qual, nova situação.
E lá vai o sistema esquecido
Do que havia acontecido.

Sérgio O. Marques

A censura silenciosa

A dor profusa no silêncio adormecido
Escorre ímpia numa dança mirabolante
Corpo acima. Segreda-nos ao ouvido
Vãs promessas dum amanhecer distante
Turvo num auguro oco de sentido.
Serpeia suave, delineia carícia ardil,
Engoda, engana, tolha, torna infantil
O discernimento, a certeza do se ser.
Sou surdo em a ouvir, sou cego em a ver,
Sou triste se com ela me sinto bem.
Quero de mim ser senhor, ser pensante,
Quero pensar mais alto, ir mais além,
Viver humilde num mundo honesto,
Num mundo nú, despido de proveito.
Viça-se silente a preceito,
Nas trevas cresce, aumenta lentamente.
Os seus tentáculos parasitários estende
Para nos abraçar, para nos tragar
E nos tirar a vida sem darmos conta.
É cruel tirana da escravatura,
Trazendo a democracia na boca,
Afã da penúria, amiga da amargura.
Numa mão, traz flores de maravilhar;
Na outra, um punhal para nos matar
E na terceira, um dedo que nos aponta,
Que nos acusa de sermos pobres
com pregões de valores nobres.
Aperta e cinge, vil afronta
Como é hipócrita, como é louca.
Ela, que nos conhece plenamente
Mas nada é sem nós, felizmente.
Ardilosa, faz-nos acreditar e descrer
À sua vontade, a seu bel-prazer
Moldando arbítrios sob falsa moral.
Dissimula de ciência a técnica
Sem qualquer máxima, sem qualquer ética,
Engodo apêlo, engano sentimental,
Hasteia bem alto a bandeira da salvação
Sempre que semeia o terror, a destruição.
Impinge a fome e depois sacia,
É déspota e mártir da sua própria ira
Num áspero afago com mão macia
Que nos prende a consciência,
Porque tudo o que é, é mentira.

Sérgio O. Marques