sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Preso


Nunca soltou a amarra
Daquele cais onde se agarra
E se afunda lentamente
Nas areias movediças do fundo do rio.
Apenas fluem aspirações na corrente,
Um intenso desejo vaivém de liberdade,
De navegar ao largo como um navio
Sem escolta, sem calabre.

Somente o medo do avante,
Do que há mais adiante
Do longínquo horizonte, o desconhecido,
É-lhe cárcere do pensamento,
Preso, naquele porto perdido
Duma pátria de outro tempo,
Já tão velha como o velho arganéu
Onde, atracado e combalido,
Num estertor, aspira o céu.
Tem, por descanso, única tença.

Acreditou e a sua crença foi sentença.
Não caminhar, foi o seu caminho
Para morrer sozinho.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Trocaram sorrisos

Trocaram sorrisos de seda tímida
Por entre folhas bruxuleantes de copas ralas,
Pousada uma joaninha numa delas.
Rasgavam-se nas faces, de parte a parte,
Coradas de rubro, manchas de pétalas rosadas
De amigos, já há muito, desconhecidos.
Cálidas lembranças quase apaixonadas
Adoçaram o ar etéreo de algodão doce.
O passado revisitou-os naquele recanto
Dum efémero momento de nostalgia
Enquanto o vento débil, soprando em brisa,
Regia uma sinfonia de pinheirais
Ao longe daquele singelo jardim citadino.
Era meia-luz nos candeeiros de horas de ponta.
Seguiram as vidas sem cumprimentos
Levando, no peito, àquelas horas vagas,
Uma breve sensação de leveza.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Olhar


O olhar transpira emoções
Da alma e da forma do ser.
Traz, das cores, as sensações
E o júbilo da essência dum enternecer.

Olhou, de soslaio, desconfiado.
Um estranho, d'atalaia, espreita
Fomentando a andadura ao medo.
Viu-o, no seu olhar disfarçado,
O seu sorriso azedo.
Não olhava amor mas maleita.

Então tempo, não era mais
E fugir foi palavra de ordem:
Fugiu (mas não antes sem deixar
Atrás um olhar a alguém)
A voar,
Por entre os taipais.


sábado, 14 de agosto de 2010

O furto

Num domingo de calor
Diz com voz esganiçada,
A esposa do doutor:
Que desgraça! Fui roubada!

Veio p'ra rua sem medo
Atumultuando o dia.
Transformou tanto sossego
Numa intensa algaravia.

Uns, imitavam cochichos
Com sussurros de opinião.
Outros, com seus mexericos
Eram os mestres da razão.

Quem roubou, ninguém sabia,
Mas, à laia de adivinha,
Toda a gente bem o dizia:
-Foi o filho da vizinha!

Morava ali mesmo ao lado
Um rapaz de mau vestir,
Sem emprego, sem cuidado,
Sem um chão onde cair.

Com um chapéu desbotado,
As calças rotas à frente
E o casaco tão rasgado
Lembrava um indigente.

A vizinhança alvitrava
Hipóteses sem fundamento
E o moço condenava
Sem cuidar de julgamento.

Somente ele era capaz
De um crime com malícia.
Para prender o rapaz
Mandaram vir a polícia.

Era sabido e experiente
O detective de serviço.
Pôs ordem naquela gente,
Acabou com o reboliço.

Fez perguntas, inquiriu,
Toda a gente interrogou.
Ninguém sabe, ninguém viu,
Quem o crime perpetrou.

Formulou com diligência,
Juntou factos, diligente.
Concluiu em evidência:
- O rapaz está inocente!

Encontrou na sua safra,
Uma prova concludente.
Descobriu o autor da farsa,
Um homem fino e decente.

Andava sempre de fato
E gravata a adornar.
Tinha um odor perfumado
E um sorriso de encantar.

Dizia ser professor,
O homem galante e cortês.
Afinal o tal senhor
Era ladrão de má rês.

O biltre que era ladrão
Enganou tantos espertos,
Deixou-os sem reacção,
Ficaram boquiabertos.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Desalento

Não há modo ou matéria em meu ser,
Um jeito efémero sequer,
Sequer um sentimento frágil
A ataviar os dias de lamento.
Com um gesto ágil
Aceno ao amor que vai contente,
Zarpando indiferente
À revelia do pensamento.
Não me acena de volta,
Não entende o meu acto de coragem.
Voa como um cavalo selvagem
A correr à solta
Pelos quelhos fuscos do sonho.
Viverá em algum lugar medonho
Falto de qualquer encanto?
Será o meu caminho escuro,
Tão escabroso e duro
Ou não terei direito a tanto?
Somente brilha como réstia da lua
Uma ténue esperança já seca e crua.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Esta cona de país

Esta cona de país
Traz-me um caralho de azar
Não sei bem que mal eu fiz
Para vir aqui parar.

Esta merda de nação,
Porca feia a tresandar
É uma piça sem tesão,
Uma puta à beira mar.

Uma cabra bem fodida
Ou um paneleiro enrabado
Não fodem tanto na vida
Como este país deslavado.

domingo, 1 de agosto de 2010

No teu carinho

Vi
Os rios a serpear,
A brisa, de leve, a soprar,
Os pássaros no céu a voar,
As ondas do mar a quebrar,
As árvores, ao vento, a dançar,
Safiras e esmeraldas a brilhar,
Um sino, na torre, a tocar,
Um velho baloiço a balouçar,
O sol, no céu, a raiar.
Vi
Mil cores do arco-da-velha,
A lua que no firmamento espelha
A magia do luar,
O uivo dum lobo em silhueta,
O som estrénuo de trombeta,
Pelos ares a acalentar,
As montanhas brancas de neve
Das histórias de embalar
Que tão bem o tempo escreve.
Vi
Os peixes no mar a nadar
Salgado com o mais fino sal,
Belas estrelas a cintilar
No escuro espaço sideral,
Um diamante raro e puro,
Um morango já maduro,
O amor que faz amar,
Panaceia universal,
Vi a pedra filosofal.
Vi
Tesouros de atarantar
Em ilhas de fantasia
Com aroma, a flores, no ar
E fragrâncias de alegria,
Uma rocha com forma estranha
Perdida em algum lugar,
Traços de beleza tamanha
Do crepúsculo a iluminar
Quentes tardes de nostalgia.
Vi
O sono monótono e dormente
Duma máquina a maquinar
Inconstante, constantemente
Incessante, sem cessar,
O grito intenso e mordaz
De um martelo a martelar,
Ode poética e loquaz
De um poeta a poetar,
Da indústria, a declamar.
Vi
A Primavera e os anseios,
Nos jardins, de amores sinceros,
O Verão que, nos meneios,
Traz, singelos, os seus esmeros,
O Outono a folhear
As copas enrubescidas
Que o Inverno, a desnudar,
Despindo-as, as traz despidas,
Numa canção de embalar.
Vi
O gado no prado verde
Tão sereno, a deleitar
Saciando fome e sede
Na erva fresca a crescer,
Num riacho ali a passar
De água límpida a correr,
Um catraio a brincar
Sem nunca se aperceber
Sem nunca parar para pensar.
Vi
A serra tão longe, além
Do horizonte que fascina,
O carinho duma mãe
Trazendo ao colo uma menina,
Uma fada tão brilhante
Numa terra encantada
Dum reino antigo e distante
Doutro tempo, doutro instante,
Uma rosa encarnada.
Vi
A beleza de arrebol
A tingir o firmamento,
A calmaria ao pôr-do-sol,
O sabor doce dum momento,
A maravilha colorida
Duma aurora boreal
Magia, há muito esquecida
D'enlevo celestial,
Uma cidade d'oiro perdida.
Vi
O mundo na minha mão
Pintado duma estranha cor
Com a perícia dum artesão,
O sonho, todo o esplendor
Deste leito onde me aninho
Ao abrigo dos males da sorte,
Vi a vida até na morte
Na candura do teu amor
Na brandura do teu carinho.