domingo, 29 de junho de 2008

Fado

Amália tinha uma porca
Chamada Camélia.
Sempre que a porca ia,
Toda a gente dizia:
Lá vai Camélia,
A porca da Amália.
Amália tinha uma cadela
Chamada Cândida.
Sempre que cadela ia,
Toda a gente dizia:
Lá vai Cândida,
A cadela da Amália.
Amálida tinha uma mula
Chamada Fermosa.
Sempre que a mula ia,
Toda a gente dizia:
Lá vai Fermosa,
A mula da Amália.
Amália tinha uma pata
Com uma trela.
Sempre que a pata ia,
Toda a gente dizia:
Lá vai a Amália
Com a trela na pata.
Quando a Amália cantou
A porca grunhiu,
A cadela ladrou,
A mula relinchou,
A pata cacarejou
Lá Lá Lá
Ronc ronc ronc
Ão ão ão
Ió ió ió
Qua qua qua
Mas que concerto afinado,
Quão lindo, era fado.
Uau! Fado era,
Era o fado da Severa.

Sérgio O. Marques

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Passa

Passa brando aceno jovial
Cortês. Singelo passa
E quando passa, abraça
Sorrisos de um amor cabal.

Quem quer que passe o ama
O asceta que se faz crer
Cândido que a alma inflama.
Mais puro não podia ser!

Olho, vejo-lhe o veneno.
Olha-me! Sabe que o temo.
Só eu lhe vejo o mal ruim
Mas sou louco por ser assim.

Sérgio O. Marques

terça-feira, 24 de junho de 2008

Astros

Olho o céu e miro, fascinado
Os astros no seu movimento perpétuo
Ao sabor das equações seculares.
Não sei se são mestres do fado,
Se nos sabem o destino incerto
Ou se fluem espectaculares
Numa harmonia celestial,
Sabedores de física-matemática.
Sinto, no sangue, tamanha extática,
A sua maravilha que me ferve,
A sua inteligência fenomenal
Que me inflama todo por dentro:
-Eles que nos mostraram o tempo,
Nos ensinaram as estações,
Cujo exímio bailado nos serve
De guia, nos vela à noitinha,
Nos orienta e nos adivinha.
No seu seio borbulha a alquimia,
Toda a química que nos faz matéria,
Que nos forma o corpo e carne,
Material invólucro de sensações.
E tudo isso é estonteante magia,
Pois, para nós foram criados,
Para, por nós, serem vislumbrados
Depois do pôr do sol de cada dia.

Sérgio O. Marques

domingo, 22 de junho de 2008

Desiste

Caminha só nas escaldantes
Areias do deserto.
Os lábios crestados pelo sol
Imploram um pouco de água,
Nem que seja uma pequena gota.
Sente que do destino está perto,
Que se vai cobrir com um lençol
Doirado num berço de seda fina,
Palácio maravilhoso.
São só miragens a trazer ilusão,
Apenas o aguardam as noites frias
Da escura solidão.
Avança denodado, sequioso
Companheiro da esperança
Enquanto esta não o abandona.
Avista oásis mirabolantes
Povoados de gentes espampanantes
Alimento da perseverança,
O veneno do coração
Do ser incúria da decepção.
Com lânguido cambaleio
Prostra-se, mãos na face,
Joelhos no chão
E tantas lágrimas por chorar.
Nada mais o alenta,
Nada mais o acalenta.
Olha para trás e o que vê?
Tão somente as suas pegadas
Apagadas pelo vento
Da vida que já nada tem para lhe dar,
Nada para o fazer lutar.
Desiste no meio de nada
E no nada cai.

Sérgio O. Marques

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Aldeia adormecida

Naquela aldeia desconhecida
Ao ocaso, bela, adormecida
Badalam as trindades roucas
Canto triste do velho sino.
Das janelas apagam-se luzes poucas
Que não se chegaram a acender.
Ao relento passeia um menino...
Mas que menino pequenino!
Que andará por ali a fazer?
Não chora, nem ri
Apenas passa por ali
E por ali não há mais nada.
Pelo crespúsculo iluminada,
Toca a torre tristes trindades.
Lá bem no alto, dança o carvalho,
Ao canto dos anos e das idades
Tão sereno como a brisa
Das quentes manhãs de orvalho.
Além pára o menino,
O menino pequenino
A beber água da fonte
Cristalina como o orvalho,
Lindas pérolas de seda lisa
Vestem as folhas do carvalho
Imponente ao fim do monte.
Ao dilúculo ganha vida,
A aldeia adormecida
Mas não tanta vida assim.
As ruas cheiram a jasmim,
Rosmaninho e alecrim,
Ouve-se ténue, fraca voz
De anciães, olvidos avós
Sem se escutar o que se diz.
É uma aldeia feliz.

Sérgio O. Marques

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Difícil amar

É mais fácil prosternar,
Construir a destruição
Dum afoito arruinar
Num feroz arrojo ao chão.
Difícil é ter a coragem
De, do nada, edificar
Alento e, com paixão
Voar, seguir viagem.
É mais fácil condenar
Fútil erro oco e vazio,
Vão engano, um tropeçar
Do destino gelado e frio.
Difícil é saber perdoar
Com imenso céu no coração
Um mesquinho atraiçoar
Preciso de redenção.
É mais fácil ferir,
Trazer a morte, o sofrimento,
Mutilar, fazer cair,
Causar descontentamento.
Difícil é poder salvar
Do mal a quem carece
De um abraço, é saber escutar
Duma lágrima, aflita prece.
É mais fácil odiar.
Difícil é amar.

Sérgio O. Marques

quinta-feira, 12 de junho de 2008

O burro pintor

Andava azafamado burro
Com tinta de vivas cores
Na berma, a pintar o muro
Que dava para o lado da rua.
À margem, comentavam os doutores
Da engenharia do momento:
-Mas que obra essa tua,
Sem qualquer planeamento!
Diziam o boi, o bode e a cabra.
O cão, esse, não se manifestava,
Achava a pintura engraçada
De tons garridos sem condizer.
Luzia o sol do meio-dia
A crestar as carapinhas
Das pombas e das galinhas
E de toda a bicharia.
-Vou para dentro, vou comer.
Falava o burro aos engenheiros.
-Aqui ninguém quero encostado
Porque a pintura está fresca.
Não quero isto estragado,
Ou então vamos ter festa.
Asseverava com relinchos certeiros.
Gozava o burro, o boi
A limpar o suor da testa.
Nesse instante, o burro foi,
Logo os outros o seguiram,
Para almoçar, indo se foram.
Muito não tarda, passa o porco
Com um andar taralhouco
Arrimando-se á parede pintada
Degustando uma cigarrada.
Quando este segue viagem,
Deixa a parede cunhada
Com uma aterradora estampagem.
Logo que o boi chega, chega o burro
E apreciam tamanha obra.
-Isso foi a última vez!
Grita, com ira de sobra
E defere o burro ao boi um murro.
Estava o boi inocente
A pagar pelo que não fez.
Irascível, num repente,
Responde, à altura, à marrada
Armando-se, assim, um reboliço.
Por eles passa o porco
Com o mesmo andar taralhouco.
Trazia nas costas um castiço
Desenho de muitas cores
A causar inveja a senhores.
Foi a criatura injustiçada
No reino da bicharada.

Sérgio O. Marques

domingo, 8 de junho de 2008

Amor condenado

Um dia amei alguém.
Não me amava, amava outrem,
Que já não ama, ama-me a mim.
Porque tem a vida de ser
Tão complicada assim?
Não sabia o que sentir,
Se chorar, se queria rir,
Se a querer esquecer.
Definhei, extenuei,
Muitas lágrimas derramei,
O meu refúgio encontrei
No regaço de outro alguém.
Foi um amor enganado,
O nosso amor, amor danado,
Condenado à razão.
Não perdemos ocasião
Em entregar o coração,
Ainda nos desejarmos.
Nos amamos, nos amávamos,
Só então não nos quisemos.
Quiçá não nos merecíamos,
A querermo-nos merecer
Na paixão, no desejar
No nos querer, nos amar.

Sérgio O. Marques

terça-feira, 3 de junho de 2008

Ovar

Ovar,
Não oval
Tem mar
Cheira mal,
Não a mel
Nem a mil
Rosas do rosal:
Gente mole,
De tão vil
Sem brio,
Nada vale.
Terriola de Portugal
Sem outra com nome igual:
Ovar.
Na ria
O rio
Desemboca
A porcaria
Por um fio
Que se fia
Em água pura
Que não pára
A amargura.
É à medida do país,
Coisa infeliz.

Sérgio o. Marques

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Especulação

Especulação,
Ideias são
Senão tudo aquilo que não
Fazem parecer que são.
Teorias
E fantasias
Põem a fome na boca das crianças.
Afinal, de quem o mundo é posse,
Leis inúteis?
Quem o mundo tem,
Coisas fúteis?
(Catarro e tosse,
Da poluição
Enquanto aguardo resposta)
...Nada, porque não faz sentido
Tanta especulação.
Especular, a imaginação
De leis como estas
Evidenciam tino
Na estupidez das bestas.
Não se matem
Nem nos levem convosco,
Especuladores do fosso.
Vivam e deixem viver.
Sejam humanos como devíeis ser.

Sérgio O. Marques