quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Mar incerto

Navego nas estranhas águas calmas
Do mar da incerteza. Será que vou?
Será que venho? Será que me banho em palmas
Com flores daquilo que não sou?

Navego nas estranhas águas quietas
Do mar da vida. Não sei! Indeciso,
Não vejo o rumo. As palavras certas
Nem as tenho quando as preciso.

Navego nas estranhas águas foscas
Da rua. Ferem a paisagem casas toscas
E moínhos que nada moem senão pedaços.

E os traços? Não enxergo os traços
Do sentimento. Oiço apenas a harmonia
Ao longe que me esperança e inebria.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Travessia da floresta dos empalados

A pútrida carne içada na paisagem tenebrosa
Envolve fétido ambiente sobre nós abatido
Aquando da travessia horripilante e desditosa
Da floresta erguida num nefasto ermo aurido.
Olho em volta. As carcaças fedem ao vento
Já foram gente com coração, alma e amor
Com ensejos de alegria e ensejos de lamento.
Agora nada. Corpos podres vazios plantados
Como pinheiros num pinheiral de terror,
São pesadelos saídos dos confins do pensamento.
Zarpamos velozmente como pássaros assustados
Sem rei nem roque, sem saber do sul ou norte,
Seguimos por entre a multidão dos empalados.
As lágrimas lavam-nos a face, salgadas
Irmãs das náuseas que nos fazem prostrar.
A travessia é longa nestas horas demoradas,
Horas mórbidas numa desventura de atarantar
Que fez tremer o mais intrépido e destemido
Guerreiro. Subitamente surge para me acalmar
O fim deste longo e vil caminho percorrido.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Nasceu o Rei

Num rústico estábulo
Dormia, pequenino,
Sereno um Menino.

Numa manjedouira em madeira
Nascera o Mestre, nascera o Rei
A Luz do mundo, o esplendor,
O Sol da justiça, a Palavra d' amor.
Numa cabana tão pobre
Aconteceu o milagre
Que o mundo mudou
E uma nova Era s'alevantou.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Lembras-te

Lembras-te dos cálidos momentos
A olhar as núvens dando a mão
Seguindo serenas no firmamento,
Tão bela recordação?

Lembras-te da velha que sorria
Naquele banco de jardim,
Olhando ares de zombaria
Quando olhavas para mim?

Lembras-te da catraiada
Que corria frenética pelo caminho
E de tanta gente animada
Que passava de mansinho
Quando o mundo era mais nada
Senão o nosso carinho?

Lembras-te desse amor meu e teu
Que em tempos nos jubilou?
O que lhe aconteceu,
Pois o viço perdeu e murchou?

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Cornucópia mamalhuda

Tripas de fora
Cabelos em pé
Uma pinça na escora
Rabanadas com puré
Empadas esfarrapadas
Fuligem da chaminé
Doi cães escarpados
Voo de libelinha
Vinho na pipa
Peido de doninha
Rochedos espancados
Com uma ripa
Chimpanzés apaixonados
Por coisa bonita
Um gato ciano
Um rato amarelo
Botas de piano
A servir de chinelo
Cartas de tinta
Tinteiros de pasto
Erva que pinta
Um daninho nefasto
Uma grosa de pregos
Enfiados na areia
Felizes e ledos
Com diarreia
Mofa a catinga
Num charco de terra
Água que pinga
Se não emperra
Uma camisa
Em forma de flauta
Uma panela lisa
Com pernas de pauta
Cheiro a xadrez
Polido de milho
Rabo de rês
Ao longo do trilho
Tábulas redondas
Com laços na crina
Tontos e tontas
Pulando-as em cima
Limonada de galhardete
Para animar dissidentes
Flores em ramalhete
No aparelho dos dentes
Cornifoliado
No meio do Nilo
Um bolo folhado
Vendido ao quilo
Estojo de estilo
Ora bem ora mal
Isto e aquilo
Et caetera e tal

sábado, 12 de dezembro de 2009

Injustiça

Monstruosidade imane da sorte inane
Ó vil desgraça,
Ferida que não sara, dor que não passa
Ó fraca morte que mataste o amor
Grito do escuro, das trevas clamor,
Ódio ardente que medra e grassa
Aço pungente que esmaga e amassa
Mão do mal que mois a vida.
Ah! Puderas tu seres esquecida
Puderas tu andares perdida,
Algures esquecida, algures penada.
Ó melancolia entristada,
Dureza da iniquidade
Que cega os olhos ao justo,
Aos homens de boa vontade,
Encarceras a liberdade.
Ó injustiça da justiça de um mundo injusto!

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A pescadeira

-Quem quer carapau do nosso mar...
(Vai brejeira, a pescadeira,
Pela rua àpregoar!)
- ... E sardinha vivinha a saltar?
Ó freguesa venha ver
O que tenho p'ra vender:
Maruca que é uma beleza,
Boa pescada p´ra cozer.
É barato... concerteza!
Já ao longe se ouvia
O vozeirão da peixeira
Como toque de alvorada
Mesmo ao romper do dia.

-De chicharro, um quarteirão,
Quero eu senhora minha
E, p'rà brasa do fogareiro,
Outro tanto da sardinha.
-Olha que bela pescada!
A vendedeira de peixe
Cantava-lhe bem animada.
-Fica para outra altura...
(Reponde-lhe a velha a sorrir)
-Não te vou comprar mais nada!

A varina torna àpregoar:
-Quem quer carapau do nosso mar
E sardinha vivinha a saltar?
A catraiada animada
Que também por lá andava
Imitava-lhe o pregão
Em perfeita entoação.
-Ó freguesa é barato!
A motejar a peixeira
Que não gostava da brincadeira,
Gracejava um gaiato.

Ia à vida, a cantarolar
Por outras ruas, outras praças
O seu distinto pregão.
Em qualquer sítio, qualquer lugar
Vendia-o à multidão
Com o seu ar sorridente
No tempo de antigamente.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Viagem do futuro

Abre-se um rasgo num lapso temporal
Em vozes distantes voltadas à mente
Sobre o pano estendido, escuro sideral,
Dos ciclos imensuráveis de tempo ausente.

Dos breves momentos de estranha loucura
Vêm fluidos psitrónicos de estranheza.
Alienantes luzeiros na noite escura
São lunáticos sussurros de sã beleza.

Marcam-se os ciclos de indícios ao pensamento
E o destino surge do lugar das estrelas
Onde o futuro lido se vai escrevendo.

Espectros do que foi, do que é, do que será
Esvoaçam num relance. E, num mundo
Que s'adivinha, o futuro s'adivinhará.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A casa do eremita (O grito da loucura)

Algures nos confins do bosque abre-se uma clareira
Ao fim dum trilho de penitência. Da luz ao fundo
Do caminho ergue-se uma pequena casa em madeira
Do velho eremita solitário. Aparece no fim do mundo
Como um oásis no deserto, um templo há muito perdido
Onde não há eira, não há beira nem passa o tempo.
Tudo pára, tudo espera, tudo é vida, é ser profundo,
Reverência à natureza, longo deleite dum momento
Onde padecem insanos desaires de toda a lida vã.
O pio das aves é harmonia dum arrulho de embalar
Num acordar sereno trazido no orvalho da manhã.
O correr de todas as luzes citadinas são pirilampos,
O retumbo cavo da sirene de um navio a entrar no cais
É o cucuar de uma curuja que paira sobre os campos,
A música que encanta de um preciso relógio de parede
É o chinfrinar de uma árvore apinhada de pardais,
O pranto de uma criança perdida no meio da multidão
É o ténue ganido de um cão que procura matar a sede
Mas que vive livre numa felicidade estranhamente selvagem.
O incivilizado eremita é o inimigo da civilização.

domingo, 29 de novembro de 2009

A uma dona

Dona horrível
Cobra execrável
Deplorável
Bicho maldito:
Se te vejo... vomito!

Dona concubina
Tens piolhos na crina
Cospes cicutina
Bicho maldito:
Se te vejo... vomito!

Dona meretriz
Merda do nariz
Caca de perdiz
Bicho maldito:
Se te vejo... vomito!

Dona carraça
Boca de nassa
Vens da desgraça
Bicho maldito
Se te vejo... vomito!

Dona embruxada
Peçonha danada
Cadela açulada
Bicho maldito:
Se te vejo... vomito!

Dona patega
Pacóvia labrega
Pipa de pega
Bicho maldito:
Se te vejo... vomito!

Dona seringa
Lagarta que minga
Cheiras a catinga
Bicho maldito:
Se te vejo... vomito!

Dona veneta
Verruga na teta
Fraca tineta
Bicho maldito:
Se te vejo... vomito!

Dona fungosa
De pele escabrosa
Craca cirrosa
Bicho maldito:
Se te vejo... vomito!

Irra inferno
Gelo do inverno
Macaca que ri
Que uma enxurrada te leve
P'ra longe daqui.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Bordado de mar

Fito perdido um bordado
Azul do mar mesmo à beira
E um maravilhoso rendado
Rendilhado de fina areia
No teu decote perfeito
Onde me prende o olhar.
Fito perdido o teu peito,
Reflexo de um lago ao luar.
O teu seio, doce contorno,
Silhueta bordada tão bela
Com fio de prata no mais fino ouro,
Bordado de luz duma estrela.
Ao crepúsculo, enquanto o sol se esconde
Iluminando, rubro, o teu semblante
Leva-me bordejante não sei bem onde
Algures num sonho, num outro instante,
Num prado sereno, no alto monte,
Num rio que viaja errante
De água límpida do teu ser.
Musa da minha vida, o meu viver,
Delicadeza de terna paixão
Canto distante do entardecer
Vieste meu inocente amor colher
Prendido na tua mão.
Olho perdido o azul dos teus olhos
E as rosas no teu corpo aos molhos
Na saia vermelha escarlate.
Trazes um laço de seda,
E na tua blusa aos folhos,
Um sabor a chocolate.
Ó júbilo! Ó alegria,
Soberba luz que me alumia!

sábado, 21 de novembro de 2009

Carta a uma amiga esquecida

Palavras que te não deixo
Nesta hora conturbada
São causas do meu desleixo,
Infiel ao meu desejo,
Minha ária desleixada.

As coisas que te não digo
Em tempos de amargura
Não são silêncios de amigo,
Não me inquietar contigo
São sinais da minha incúria.

Presas no lápis e escrita
À espera do papel,
As letras que o meu peito dita
Numa ânsia aflita
Desaguam a granel

De tão grande, em ser acervo
Nesta carta que te escrevo.
Meu saudoso cumprimento
No teor desta mensagem
Que, mesmo tarde vá a tempo,
Espero encontrar-te bem.

Um cálido abraço sincero
Te deixo com sã ternura
E um beijo com tanto esmero
Te leve um doce tempero
À vida que te é tão dura.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Escolha

A circunstância existe,
A incerteza subsiste,
A perplexidade estanca
A essência do que avança.
O destino vem
Como causa que se sustém
Na escolha que se faz
Mesmo na alegria ausente
De uma tristeza presente
E voltar a trás
É também andar p'rá frente.

domingo, 15 de novembro de 2009

O que é o sentimento?

Serão
O amor, a paixão,
A raiva, o ódio
Com seus encantos e desencantos
Algo mais
Que flutuações na concentração
De iões de potássio, sódio
E outros tantos
Nas membranas dos neurónios cerebrais?
Serão
Os prantos e as dores,
Os sabores e dissabores
Algo mais
Que o número de neurotransmissores
Nas sinapses dos neurónios cerebrais?
O que é o sentimento?

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Onde estavas?

Onde estavas quando trovejava,
Deixando o sol caiar
A penumbra no ar danada?
Que era de ti quando o chão fendia
Engolindo a esperança num trago,
Tragando réstias de alegria?
Onde andavas quando o mundo parou,
A música deixou de ser música
E a arte, de ser arte deixou?
Onde ias quando a treva veio
Trazendo lúgubre a escuridão,
Penitência do meu anseio?
Que fazias quando a vida se me desfez,
Dissolvida em vis sabores,
Duro golpe sem arnês?
Que era de ti quando, cabisbaixo,
Percorria as noites sem tino,
Sem vontade e sem destino?
Onde estavas quando perdeu a vontade
O meu pobre coração de bater
Com cada lágrima de saudade
Em olhos húmidos a escorrer?
Levada ao longe na tempestade
Que queres agora, na bonança,
Quando és triste lembrança?

sábado, 7 de novembro de 2009

Fui c'um cesto às camarinhas

Fui c'um cesto às camarinhas
Ao pinhal lá adiante
Num dia tão radiante,
Dia d'alegrias minhas.

O sol alto raiava,
Nessa tarde de verão.
Fui sozinho às camarinhas
Levando um cesto na mão.

Encontrei lá uma flor
Quando fui às camarinhas
Nesse dia de calor,
Dia d'alegrias minhas.

Encontrei lá uma flor
Na margem dum calmo rio.
Fui c'um cesto às camarinhas,
Vim com o cesto vazio.

Da margem, folhas caíam
Pétalas cor de cristal
Suaves no calmo rio
Lá adiante no pinhal.

Fui c'um cesto às camarinhas
Vi lá triste flor tão bela
Num dia d'injúrias dela,
Dia d'alegrias minhas.

Num dia d'alegrias minhas
Delonguei-me à beira rio.
Fui c'um cesto às camarinhas
Vim com o cesto vazio.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Industrialização

Uivam frágoas em fúria
Gritam roucos de lamúria
Motores de ferro em força e fogo.

Máquinas em movimento
De rodas dentadas e cremalheiras
Içam guindastes com passo lento
Pesados contentores de outras beiras.
Chiam fortes cabos em cadernais,
Atroam frenéticas, correntes de transmissão
Em serras, tornos mecânicos, conformadoras,
Quinadeiras, moínhos e tanto mais,
Um mar de delírios em convolução
Num extasiado concerto de danças sedutoras.
São grandes transformadores de potência
Alimento de tamanha eloquência,
A música que baila os vários furores
Do andar estrénuo de pontes e elevadores
Maquinismos de ar comprimido lá fora,
Silos que enchem e vazam toda a hora.
O cheiro a aço brame dormente
O sabor lúbrico das luzes fabris
Incessante ciciar de tons febris,
Tons caiados dum pálido demente.
As altas chaminés tossem fuligem
Negra no cerúleo das núvens que vão,
O fumo da hulha em evolação
Voa tão distante que à paisagem
Pinta-a, intensamente, a carvão.
O rio azul corre tingido
Da cor de barro em carne viva,
Levando além sempre à deriva
Refugos do industrialismo.
Por entre soutos e pinheirais,
Planaltos, prados e pantanais
Erguem-se em catenárias extensas
Linhas eléctricas de alta tensão
Acendendo à noite lâmpadas imensas,
Energizando toda esta industrialização.
A produção de bens de consumo
São seu fim e razão de ser,
O lucro crescente é doce sumo
De capital que não cessa de crescer.
A indústria estende cada tentáculo
Desde o operário na mais baixa esteira
Até bem ao cimo do pináculo
Da desavergonhada elite financeira.
O fim da tarde ecoa no som da sirene
Fazendo-se vida em horas de ponta
Revezando-se operários vezes sem conta
Em usinas de labuta perene
Ditando usos e costumes de cada dia,
Os rituais oriundos da engenharia.
Eis que surge como uma religião
O consumismo, o comércio e a produção.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Num sonho sonhei

Num sonho sonhei
C'um reino distante
Onde eu era rei,
Sábio governante.

Imensa a beleza
Do meu lindo alcácer
Forrado a riqueza,
Fonte de prazer.

Canções escrevia
Em terras de paz,
Salmos de harmonia
Lírica, loquaz.

Sublime a coroa
D'oiro rutilante,
Brilhando-lhe à proa
Belo diamante.

Em outro que tive
Era eu um mendigo
Muito mais feliz
Por sonhar contigo.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Segredo do passado

Paira no ar um segredo do passado
História que não conto
D'algo que estava errado
Conto que não digo,
Nos cantos da mente esquecido.
Ei-lo de pompa agora,
Esse segredo de outrora,
Agora, assombro
Como assobio de cornamusa.
Voam aos sete ventos
Os tons lamurientos
De verdade abstrusa,
O queimor dos meus tormentos.
O passado revolve
O que não se resolveu nem resolve.

domingo, 18 de outubro de 2009

Pela mão de sua mãe

Por estas ruas sem tino
Onde não anda ninguém,
Segue um pequeno menino
Pela mão de sua mãe.

Numa mão leva um brinquedo,
Na cabeça, um chapéu
Para o sol intenso e ledo
A brilhar forte no céu.

Com passo curto e apertado
De corpo claro e pequeno
Vai o menino aloirado
Ao sabor de doce ameno.

Uma camisa de linho
Desfraldada e uns calções,
Uns sapatos p'ró caminho,
Traz em si recordações,

Recordações da minha infância,
Era eu 'inda criança
Que ali passava também
Pela mão da minha mãe.

Nos lábios riso feliz,
O 'lhar alegre, tão bem
Segue contente o petiz
Pela mão de sua mãe.

Sem saber com que destino,
O qu' ir encontrar além,
Vai o pequeno menino
Pela mão de sua mãe.

Um sorriso iluminado
Na face, tão linda estampa
Com olhos esbugalhados
De inocência de criança.

Às vezes dá uma corrida,
Outras põe-se a saltitar
Certo que ao longo da vida
A mãe sempre o há-de amar.

Onde vai? De onde vem,
O menino que ali vejo
Pela mão de sua mãe,
Pela mão do seu desejo.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Libertar

Ao fundo do túnel há uma luz
Clara e intensa
Ilumina e seduz
Numa paz imensa.
Os olhos doem então
Pois era escuro
E agora não.
Libertar é duro
Mas compensa.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Silêncio

O silêncio é fino dilúculo como fio de pedra a espalhar no chão quase inaudível uma mescla de sabores entranhados na essência do amanhecer. A forma cristalina da névoa purpúrea envolta no manifesto rubro do ocaso a beijar a noite sob o olhar enregelado de um corvo apeado nas docas do cais ao sol poente forma-se no vazio de tudo enchendo o negro de nada duma cor translúcida. O som disso é a voz do silêncio, o clamor da quitude tangida na mão pela tépida brisa estanque esquecida na paisagem. As copas das árvores distantes vislumbram o infinito, imitando o verde no azul marinho do céu suspensas pelo estreito castanho balançado da raíz como um pêndulo oscilando-se ao vento. Trás música inaudível, uma harmonia de palavras por dizer, significados por encontrar num emaranhado de prantos e lamúrias roucas. É um quadro de aguarela, frescos num mural de tons exóticos à fosca luz caídos como cinza atirada ao ar de várias cores.
Ouço o silêncio, escuto-lhe a voz sábia. A vida surge-se em partitura onde cada nota é uma composição por si só ao ritmo dum beijo de lábios rosados, um sorriso no meio de tantos outros, construindo uma obra maior. Escuto-o, porque dele vem a moral. Ouço-o porque aí está a harmonia do entendimento, a água que move o moínho e, com a farinha que rega, faz o pão. A mesma água que lava as mãos e se senta à mesa à refeição com o brilho no olhar cuja extrema beleza está entregue ao esquecimento. Eis o silêncio serpeando-se por entre cada nota duma excelsa composição à espera de ser compreendido para que seja compreendida a obra em todo o seu explendor. Á noite, faz-nos uma última visita mesmo antes de partirmos para a terra dos sonhos.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A casa do senhor do reino (O grito da loucura)

A casa do senhor do reino

O senhor do reino tinha um forte.
Portentosas torres a sul e norte
Erguiam-se imponentes no cimo da serra.
Das ameias, pendiam lindas flores
Das janelas, portadas às cores
A esquecer longínqua dor, querelas da guerra.
Um majestoso jardim o palácio envolvia
Fazendo lembrar o doce beijo de uma donzela
Enamorada. Cada pétala, cada folha de si bela
Pintam em aguarela um quadro de fantasia
Sobre uma tela de sinais de prosperidade
Entoada pelos ares ao toque da trombeta.
A calmia a todo o reino embala. A verdade
E a justiça são dignas de um poema de um poeta
Escrito em folhas de esperança com tinta de alegria.
As paredes em cor de prata dourada e d'oiro
Ornadas com tão esbeltas e finas esculturas
Lembram extasiantes vislumbres do mais belo tesoiro
Enterrado num mundo de riqueza e de magia.
E toda a gente canta! E a vida são canduras!

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Os mensageiros da liberdade (O grito da loucura)

Vão bramindo a pátria, cruz ao peito:
Os valores da sua moral, a civilização,
A ventura da justiça, o lauto preceito
Da liberdade. São livres, os outros não!
A bandeira içada ao vento em riste
Sussurra, suave, ditames dos ideais de amor
Dos valores da humanidade que subsiste
Em sonhos. Meros mensageiros dum mau valor.
Ouve-se o grunho de combate, estridente grito
Ao homem que lhe corre o sangue da nação
Nas veias dilatadas pela ira ao inimigo.
Não trazem ódio, trazem o país consigo,
Trazem abraços belingerentes na palma da mão
Mascarados de justiça, vestidos de democracia,
O preceito da fraternidade aos povos
A caraquejar a morte aos infiéis como corvos,
A sorver-lhes a seiva e abutres em necrofilia.
Quem não vive como eles caminha na penumbra
E merece a morte pela mais vil tortura.
E com essa cádava adubam a loucura.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Te conheci

Domingo de sol
Num dia a brilhar
Bela era a fragrância
Pairando no ar.
Depois de acordar
Levantei-me então
Com muita alegria
E satisfação.
Lá fora, um melro
Piava ridente
Piando alegre
Um piar contente.
Um canto bramido
Ouvia-se bem.
O austero galo
Cantava também.
Quis dar um passeio
Na linda manhã
Com cheiro a morango,
Laranja e maçã.
Poucos transeuntes
Na rua se via
Pois 'inda no céu
A lua sorria.
Da serra, arrebol,
Cor da madrugada
Vi nascer o sol
Da névoa serrada.
Pássaros voavam,
Um cão a ladrar,
O molhado orvalho,
Frescura do mar
Caía das telhas
Em gotas singelas
D'água cristalina,
Paisagens tão belas.
A porta fechei
E fiz-me ao caminho
P'lo meio dos prados
Feliz mas sozinho.
Airoso zarpei
Sem tino, saí.
E foi nesse domingo
Que te conheci.

sábado, 26 de setembro de 2009

É o progresso

Casas erguidas no meio do nada.
Casas perdidas, casas esquecidas
Nos pantanais.
Desenhos de lidas, pintura de vidas
Coloridos de gente azafamada,
Eram sinais.
Agora ruínas sobejam d'outrora,
Outrora vivendas, escombros d'agora,
Nada mais.
O chão que as semeou chora
O silvado que as cobre e o pomar lá fora,
É sozinho.
Como ir, como chegar lá?
Pastos e erva são o que há,
Sem caminho.
Casas erguidas para lá do trilho,
Além dos campos de milho
E dos arrozais.
Casas esquecidas nos pantanais
Sem pai, sem filho
Sem família que as more.
Entregues aos ditames das fráguas,
Perdidas nas mágoas
Sem o telhado que as cobre
E a vida que lhes deu asas.
São ruínas, já não são casas
No mundo que corre brejeiro,
Mundo farto em excesso.
É o progresso!
E o progresso é querendeiro.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A ria de Aveiro

Ria, lágrima de musa salgada,
Encanto do mar num canto da Terra,
Dorme serena na noite estrelada
E acorda com o sol que sobe da serra.

Por entre o junco e a canízia em moiteiras,
Deitada como mantos prateados
Escuta silente as aves ligeiras
E os peixes que em si bailam animados.

São sua história belos moliceiros,
Mercantéis de sal seguindo viagem,
Velhas salinas dos tempos primeiros.

Quando navego nas ondas das águas,
P'lo canto do olhar vislumbro na margem
Linda morena afogando-lhe as mágoas.


Apesar de morar na Ribeira de Ovar bem perto do cais que hoje não é sequer uma sombra do que outrora foi, já faz muitos anos que não navegava na ria. Este último fim-de-semana tive essa oportunidade. Achei que merecia um poema.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Afinfei no mafagafo

Encontrei um mafagafo
Por aí a passear.
Afinfei-lhe c'um sarrafo,
Deixei-o a estrebuchar.

Do mafagafo asco tinha
Mesmo ali à minha frente.
Com mais uma sarrafada
Deixei-o inconsciente.

Os lábios de raiva mordi
E com força no meu punho
Mais um golpe lhe ingfligi.
Não soltou sequer um grunho.

A ira sentia aumentar
Enquanto mais o derreava
E sem pensar em parar
Por pouco não o matava.

Olhei p'ra ele de lado
Num repente arrependido
Encheu-me o peito de pena
Ao vê-lo aos meus pés caído.

Donde vinha tanta dor,
Aversão de entristecer?
Queria eu então matá-lo
Mas vou deixá-lo viver.

sábado, 12 de setembro de 2009

Angústia

Explode-se a mente
No corpo taciturno da noite.
As vozes do passado em uníssono
Irrompem o silêncio de veludo
Com gritos de guerra e dor lacinante.
-A morte se avizinha! - Clamam,
Enquanto o tempo cessa a marcha
E teima em não passar.
-O fim está próximo! - Rompem
Em trovões o quarto sozinho
Fechado num escuro inaudível.
As gotas de chuva lá fora,
Trupando de mansinho à janela
Jorrariam tragos de uma terna carícia,
Uma estranha esperança do amanhecer.
Mas o tempo quente é seco
E a chuva não se faz cair em ermos.
Revolve-se o pensamento
Procurando um recôndido recanto
Onde se agasalhar de si mesmo.
Ele encontra-se e encarcera-se em si.
-Uma palavra que me liberte de mim!
Pensa, esse pensar que também o faz
Já tão cansado de respirar.
-Um gentil gesto que me alivie!
Procura a paz que não conhece
No ténue som que nem sequer ouve
Das trindades do sino duma igreja
Numa terra distante algures
No cimo da serra que se vê do leito.
-Venha o sonho, nem que seja pesadelo!
Deseja veemente, soltando uma lágrima.
-Porque pesadelo são destas paredes
O regozijo da minha solidão.
Dilui-se em prantos, imerge em choros,
Não se escapa por um segundo só,
Um breve alívio por mais efémero que seja.
Belingerente é a contenda consigo
Com gládios de aço com que se degladia.
Sossega só quando o sono vem e o carrega.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Descalço

Descalço, piso cascalho,
Depois de areia macia
Onde me perco e atrapalho,
Onde me firo em demasia.

Por um trilho gravilhado
Calcorreio o meu caminho.
Vou descalço e magoado
Contusão em que definho.

Neste imenso chão se encontram
Conchas pungentes tão belas
Não são elas que me aleijam
Sou eu quem me aleijo nelas.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Voa

Uma borboleta duma mão aberta,
Branca palma
Voa liberta,
Bela, calma,
Serena no prado florido.
Voa com sussurros do vento
Como a alma
Cheia de alento,
Como um anjo divertido.
Um beijo meu
Voa do coração
Procura um sorriso teu
Amor, paixão
Voa alto como o céu
E a borboleta que voa.
Beijo teu
No meu peito toa,
Canção que eterneceu
Desejo meu
Que no céu trovoa.
Uma borboleta voa
Do meu peito à tua espera
Esperando encontrar o teu,
Doce quimera
Ao encontro dos meus lábios.
Voa o meu pensamento
Como pássaros
À forma bela de ti,
Beleza do firmamento
Em outros sítios, outro tempo,
Agora, aqui.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Sabor a nostalgia

Crianças a recriar lembranças.
Lembranças do passado, do meu.
O futuro é delas, que lhes trará?
A morte é certa, a sorte incerta,
A vida é bela, o amor desperta
A alma de viver em paz.
O que virá, virá! O que será, será!

O mundo gira, o vento sopra
O sol brilha, a nascente brota,
O rio corre, o mar acolhe,
A ave voa, o peixe nada
O sorriso vem nos lábios e na face,
O abraço vem da alma como a saudade.
A paz é estar certo disto.

No tempo vindouro, outras virão
Com futuros mais longínquos,
Outros futuros tão distantes
Daquilo que o meu passado foi.
O fim é para cada um de nós...
Quando chega a hora
E a vida nos deixa uma vez.

domingo, 30 de agosto de 2009

Os bichos do país dos desditosos

Os vis porcos voadores
Só aviam por dinheiro
Com chapéus de aviadores
No país dos cobertores
A tilintar o mealheiro.

Os cordeiros são lãzudos,
São néscios sobremaneira,
Parecem uns cabeçudos
A expectar o entrudo
Que passa na rua alheia.

Os cães... esses? Boas reses,
Quando a raiva não apega.
Airosos passam. Às vezes,
Tomados como corteses,
Ferram que até fumega.

As galinhas, mexericos
Cacarejam toda a vida.
Sejam pobres, sejam ricos,
Tenham potes ou penicos,
Não se escapam à intriga.

Os camelos bombam coca
E exdruxulam à janela
Mais tarde com tanta moca
Fazem suflê de minhoca
Do estrugido da panela.

Para os gatos a beleza,
Boniteza, nada mais
Mas quando os sentam à mesa
Abate-se logo a tristeza
Pois são homossexuais.

A raposa é matreira.
Mais a cabra sai da tasca.
Quando vem na brincadeira,
Com uma manobra certeira
Deixa qualquer um à rasca.

Mui sagaz é o jumento
Num país de tanta gente.
Tem condão de encantamento
A falar no parlamento
Com discurso eloquente.

Os vermes a rastejar
Pelo chão, sem qualquer nome
São bichos de arrepiar:
Mesmo após tanto manjar
Estão sempre cheios de fome.

Nenhum bicho s'aproveita
No país da bicharada.
Um país devoto à peita
Nunca mais se endireita,
Nunca deixa de ser nada.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Acordo

Escuto a calma brisa suave de outono.
Oiço sussurros da erva fria na manhã
Caindo-me o fresco orvalho a meio sono
Na fronte fragrância a laranja e romã.
Escuto porque o dia raia.
Oiço o chilrear dos pardais ladinos
Na árvore que ao fundo baila
Uma dança eloquente de paladinos.
Escuto porque o dia vem.
Oiço o deslizar da madrugada
Lentamente muito além
Seguindo a poente a noite passada.
Comigo fica uma raio de sol
Espreitando a translúcida janela
Corando em várias cores o lençol
Que me cobre em cambraia ou flanela.
Acordo com a alegria de um petiz
Como uma rosa a desabrochar no jardim,
Jardim meu, floral onde sou feliz
Com o pensamento a deleitar-se em mim.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

A alegria da bicharada III

O burro dirige-se ao balcão:
-Um copo para aliviar a tensão,
Pois o boi já está atrasado.
Concerteza - responde o corvo,
Dono daquela adega social.
-Diz-me, qual é o teu estorvo,
Que te incomoda afinal?
Pergunta-lhe com um brilho no olhar.
-Deve-se ao que se passou na praça.
Returque o burro a cochichar.
-Muita gente lhe achou graça
Mas desconfiamos que algo se passa.
Mais não vou aqui adiantar.
Esboça-se no corvo um sorriso natural.
Estava-lhe entranhado na personalidade:
Ouvir daqui, dizer acolá. Era vaidade,
Mostrar-se informado. Não o fazia por mal.
O burro há muito o conhecia,
Ou assim o pensava
E não acrescentou mais nada,
Dirigindo-se a uma mesa vazia
Pensando: - se calhar adormeceu!
De repente, entra o boi esbaforido,
Justificando-se: -Furou-me um pneu!
O burro sabia que ele tinha adormecido.
Segredaram durante mais de uma hora
Na mesa ao canto da sala.
-Vinde daí, vamos embora!
Ouvi-se já a cabra que não se cala.
-Vamos passear até lá fora.
O boi e o burro estavam atónitos, mudos,
Com tão sórdida conclusão.
-Vai mudar o mundo os seus estudos,
Mas a sua arte não nos trará nada de bom.
Falavam do mocho e da sua descoberta,
Que deixara ao mau desejo uma porta aberta.
Decidiram esquecer e com a cabra foram.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Princípio cosmológico

Igualdade em cada ponto. Cada direcção
Tropeça indiferente o curioso olhar.
O caminho a trilhar não conhece religião
Ou raça, memória única de qualquer lugar.

Cada choro encerra o júbilo do mundo
Desde a tímida singularidade ao super-enxame.
Os risos têm segredos dum pranto profundo
Do mais pequeno planeta à estrela imane.

O sentimento teve origem primordial
No princípio do tempo, início do espaço;
Gerou-se a luz, a treva, a sopa universal.

Propaga-se, isotrópico, com eloquência
E a mão do destino cingir-se-á à essência
Dum grande amor onde o ódio é escasso.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Perdi a inspiração

Perdi a inspiração
De versos e de poemas.
Sinto um vazio apenas.

As palavras,são somente
Palavras. Nada mais são.
Nem tristes, sequer contentes,
São despidas emoção.
Onde andas, forte desejo?
A que sabes, ó doce beijo?
Aí já não há poemas!

Sinto um vazio apenas!
As palavras e os versos
Caídos da minha mão,
Deixei-os algures dispersos.
Perdi a inspiração.
Já não te trago comigo.
Volta a mim, estro perdido.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Amigas inseparáveis

Na cabeça enlaçado,
De um vermelho encarnado,
Um lindo laço de fita
Traz rapariga bonita
Dando-lhe um ar engraçado.

Cabelo, negro luzente,
Olhos, castanho brilhante,
Riso na boca contente,
A ataviar o semblante,
A sorrir p'ra toda a gente.

Consigo vem uma amiga,
Bela moçoila também
Onde vai uma, outra vai
Quando vem uma, outra vem,
Brejeiro retoque de intriga.

Uma é loira outra morena,
Tez queimada ao verão,
Camisa, saia pequena,
Trazem cada com seu tom
Uma malinha de mão.

Amigas inseparáveis,
Enquanto passeiam a avenida
Deixam memórias indeléveis
Em cantigas quase etéreas,
Belas melodias da vida.

Passeiam e passam na rua.
Enquanto lá vão sorridentes,
Levam nos semblantes contentes
Risos, nos lábios, luzentes
De um luzeiro azul lua.

Quem são? Perguntei pasmado
Com tão rútilo esplendor
Quando as vi mesmo ao meu lado.
Pareciam, num quadro pintado,
Antigas histórias de amor.

Era rubro o fim da tarde,
Um crepúsculo de arrebol.
O tom vermelho, cor da carne
E o grasnar das gaivotas alarde
Adivinhavam o pôr do sol.

Ao largo flutuava a traineira
Branca no cerúleo do mar.
Numa algazarra ligeira
Estavam ali mesmo na areia,
Duas crianças a brincar.

O cheiro a maresia era intenso,
Pairando no ar com ternura
Aromas de mirra e incenso.
A doce brisa de ternura
Esvoaçava-lhes os cabelos ao vento.

Senti o êxtase dum momento,
Efémero enlevo, voo de águia,
Duma sereia, encantamento,
Tão harmónico chamamento
Clamando por mim, ávida.

O tempo de repente parou,
O mundo deixou de girar,
O canto do oceâno cessou
Das ondas na costa a quebrar.
Quando as vi tudo mudou.

Seus corpos em vestes garridas
Vestiam o paladar dos meus olhos,
Encerravam contos e vidas,
Histórias há muito esquecidas
E jarros de rosas aos molhos.

O mel do orvalho de maresia
Adoçava-lhes cabelos sedosos,
No paladar de melodia
Dum sorriso de lábios garbosos
A transbordar alegria.

Cabelos negros e olhos castanhos
Faziam duma, maravilhosas delícias.
Doutra os olhos azuis, meigas carícias,
Forjavam no loiro doiros tamanhos.
Eram fonte de mil blandícias.

Delas me abeirei acanhado
Com o coração no peito demente
Como catadupa, desnorteado,
A bater inquieto, descontrolado
Esta paixão em mim ardente.

Digo-lhes em voz ténue e rouca
A sua beleza num quadro pintado
Na minha imaginação tão loquaz e louca
Que, sem jeito, em mim treslouca
A razão. Que sigo em passo desatinado.

Canto em serenata esta paixão
A desbravar-me o ser baldio
Como floresta, densa vegetação
Onde algures discorre o rio
Que leva em si esta emoção.

Uma olha-me, outra elegante
Contempla os versos deste meu canto,
Sorrindo entre si, grande era o espanto
Deste meu gesto raro e distante,
Deste meu modo fraco e quebranto.

Uma corada, outra a ruborescer
Qual ferro fundido numa fundição
Com risos marotos a florescer
Respondem sem uma graça qualquer.
Foram um manto de desilusão.

Lindas eram, não o posso negar,
Contornos de corpos admiráveis
Mas algo mais a destoar.
São ambas desagradáveis,
As amigas inseparáveis.

domingo, 9 de agosto de 2009

Sábio

Um significado procurei perdido
No coração de tantos livros,
Livros d'agora, livros antigos.
Sou sábio mas sem sentido.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Carta ao meu amor

Feliz ou infelizmente não tenho paixões mas apetece-me escrever sobre isso...

Com uma pena te escrevo,
Esta dor que me punge a alma,
Saudade que me é acervo
E me faz perder a calma.
Quero estar sempre contigo,
Sentir a tua na minha mão.
Trago-te sempre, amor, comigo
Dentro do meu coração.

O cheiro do teu regaço
O calor do teu olhar
O colorido do teu abraço
Quando me vens abraçar
São carícias do vento ardente
Soprando do mediterrâneo
Como um beijo teu tão quente,
Arrepio momentâneo
No meu peito a palpitar.
São a praia, são areia,
São o rio e o mar alto,
O céu limpo, a lua cheia,
O sol a brasir o asfalto,
São árvores a ondular
No orvalho da manhã,
São os prados a verdejar,
São pinheirais ao luar
À espera do amanhã.
São o encanto da madrugada,
No piar dos passarinhos,
Cantigas de alvorada,
Uma algazarra animada
De canários e estorninhos.
São riachos de água pura
Jorrando duma fonte mourisca,
São meneios com candura,
Belos trechos de bravura,
Denodo de alpinista.
A tua boca singela,
Solta-me ósculos de amor
Pintados em aguarela,
Maravilha numa tela
Ornados de esplendor.
Se sonho tanto contigo,
Com a tua tez suave
São teus olhos que m'amimam
Que me enchem de saudade,
É do teu sorriso brilhante
Bordado em estrelas de luz,
Lembrando-me um diamante
Tão límpido e rutilante
Que m'enfeitiça e seduz.
De noite quando me deito
Ao frio da escuridão
Trago-te, amor, no meu peito
A aquecer-me no meu leito
A iluminar-me o coração.
És o mundo que perdi,
Meu desejo de paixão.
Tanto amor sinto por ti.

domingo, 2 de agosto de 2009

Sinto-me longe

Sinto-me longe de mim,
Fora daquilo que sou,
Distante daquilo que sei:
De onde venho, para onde vou,
Se viajo, se me quedo onde estou
Se por aqui ficarei,
E continuarei assim.
É um estranho sonho
Duma terra desconhecida
Ora triste, ora risonho,
Uma verdade algures escondida
Numa realidade distorcida.
Impõe-se a dúvida do momento
Não vejo se deva chorar
Sorrir de contentamento,
Nem talvez sequer amar.
Acabo de me encontrar então
Destruindo o que se constrói
Com tanta dedicação.
Decerto nunca poderá ser herói
Quem está destinado a vilão.

terça-feira, 28 de julho de 2009

O meu menino pequenino

O meu menino pequenino
Dorme num berço de ouro.
Como é lindo o meu menino!
Como é belo o meu tesouro.

O meu menino pequenino
Dorme num berço de espanto.
Tem bons sonhos, meu menino,
Menino do meu encanto.

O meu menino pequenino
Tem olhos de diamante.
Dorme bem, tão pequenino,
Estrela d'alva cintilante.

O meu menino pequenino
Coberto com um fino véu
Faz-me ver, enquanto dorme,
Tantas estrelas do céu.

O meu menino pequenino,
Sal que me salga o olhar,
É o mel que me adoça a boca
Enquanto dorme a balouçar.

O meu menino pequenino,
Tão pequeno, sonho meu
Traz o tom do firmamento
Rubro que o sol lhe deu.

O meu menino pequenino,
Pérola que brilha à vista
Do azul que pinta o mar
Com lilás de ametista.

Ó meu menino pequenino,
Vida minha que por mim passa
Terás o fado que te agracia,
E o destino a dar-te graça,
Ó meu menino pequenino
Fonte da minha alegria
Que livre ao vento esvoaça.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Guardei segredos do vento

Fui lá donde o vento vem
Numa carroça de pau de pinho.
Há muito que mais ninguém
Calcorreia esse caminho.

Fui lá donde canta o vento
Cantigas de alegria
Puxado por um jumento,
Minha única companhia.

Fui lá donde o vento sopra
A procela e a tempestade,
C'um barco à vela de lona
Num mar de serenidade.

Fui lá donde nasce o vento
Por um trilho íngreme e estreito
Revivendo cada momento
Com saudade d'amores no peito.

Fui lá donde o vento brota
E toca o velho moliceiro
Deixando cair a bolota
No sopé de um sobreiro.

Fui lá donde o vento espira
Lufadas d'ar fresco e puro
Procurar na vã mentira
Uma réstia dum doce auguro.

Fui lá donde o vento chama,
Encanto de sereia a enamorar
No encalço desta sede que m'imflama
De ao amor um dia o encontrar.

Fui lá donde s'ergue o vento
Pairando folhas rubras consigo
Enxugar meu triste lamento
E encontrar-me em si perdido.

Fui lá donde o vento mana
Em turbilhão duma cor difusa
Acalmar a desordem insana
Duma ordem algo confusa.

Fui lá escutar o vento,
Todos os segredos que esconde.
Algures entre pensamentos,
Guardei-os não sei bem onde.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Que homem não ama a vida?

Que homem não conheceu seu amor?
Aquele que teve medo de viver.
Que homem nunca chorou a dor,
Essa dor que se orgulhava de esconder?
Quem sofre calado
E não tem mais nada a perder.
Quem é esse homem desanimado
Desprovido desse ânimo que alenta?
É quem anda perdido, sem destino,
Sem um frágil raio de sol que o acalente
Como uma mãe abraçando o seu menino.
Que homem caminha sozinho
No meio da multidão?
Quem nunca encontrou no caminho
Um grande achado, sua paixão.
Que homem não se enternece
Com o sorriso de uma criança?
Aquele que toda a gente esquece
E lhe esqueceu a esperança.
Que homem já não ama a vida?

domingo, 12 de julho de 2009

Solitário

Um barco preso à amarra num cais distante
Dum mundo cinzento d'agua tranquila e vaga
Com cheiro a moliço e sal duma vida errante
Balouça-se na ondulação tão ténue e rara.

Um viandante passeando uma terra desconhecida
Fustigado pelo sol de dia e à noite o escuro
Cerra em si segredos d'ontem, história olvida
Talhada em conchas de basalto tão frio e duro.

A nostálgica chaminé arruinada ao fim do prado
À sombra silvestre de espinhos e vão silêncio
Escuta lamúrias do vento que esvoaça irado.

Torna a si cada pensamento que não entende.
O solitário caminha a olhar o barco e a ruína
Sem conhecer um amor, um amigo, um confidente.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

És-me muito

És a límpida água pura
Que me lava as mágoas do coração
Jorrando de um fonte mourisca
Como uma lágrima que escorre a face
Levando em alívio a tristeza.
Não te bebo, não te sorvo a seiva
Por te querer livre nesse rio prateado
Refrescando-me, de braços abertos,
Na alegria de uma carícia tua
A enxugar-me os prantos com pele macia.
És o mar na minha vida, azul imenso
A fustigar o branco areal da praia
Onde me deito ao brasido do sol,
Deleite de um banho fresco de água salgada
Num verão de tantas cores tropicais.
Perde-se-me o verde das copas das sequóias
No brilhante castanho do teu olhar;
Perde-se-me o colorido dum jardim de flores
No vermelho rosado dos teus lábios
A enternecer-me a alma num afago teu;
Perde-se-me o violeta de uma aurora boreal
No fino breu dos teus cabelos sedosos
A esvoaçar ao vento em maravilha
A escaldante frágua da tua grã beleza
Razão do meu alento, alimento que me dá vida.

És a centelha que me aquece o peito,
Luzeiro que me guia na perdição das trevas.
És a brasa que me aquenta nas noites do deserto,
O gelo refrescantes nas areias fervidas,
Oásis na minha sede demente de ser feliz.
Amo-te na tua luz, no teu brilho rutilante,
Sonho meu de olhos fechados sentindo a brisa
Do orvalho das ondas duma manhã de frescura
Com um ligeiro sorriso no semblante.
Ninfa companheira no desencanto da solidão,
Doce inspiração do fluir dos meus dizeres,
Quadro tão belo duma paisagem bela algures
Enches-me o peito do uivo intenso dum vulcão
A rugir ao vento com toda a pompa dum cometa,
Sonido estridente de trombetas e clarins.
Por ti, movo montes, bebo rios, corro mundo,
Navego solitário todos os sete mares
Ao teu encontro, ao encontro de quem és.
O azul e o branco do céu e das núvens
São o meu destino quando penso em ti.

És a chave em oiro da fechadura em prata
Desta prisão em grades de diamante
Desterro meu indigente de pedras preciosas.
Liberta-me em êxtase com o macio das tuas mãos.
Liberta-me dócil com o cheiro do teu cabelo.
Liberta-me gentil num momento no teu regaço,
Que, de tão efémero que seja, pareça eterno.
Liberta-me de mim, que que a mim prendo
E açoito, querer amar a vida com todo o peito
E cantá-la ao firmamento num poema declamado.
És viagem num país exótico há muito perdido,
Tesouro escondido que auguro encontrar,
Mil e uma riquezas de seda e cetim e ternura,
Terna virtude atávica dos tempos idos.
Mostras-me todos os quatro cantos do mundo
Num beijo apenas, num gesto singelo de paixão,
Num meneio ligeiro que me engraça e hipnotiza.
Perco-me onde não estás, preso onde não te vejo,
Canso-me, agastado, sempre que estás ausente
Despojado de tudo o que a mim m'importa.

És um abraço sincero e verdadeiro que receio dar,
Agarrado ao teu corpo sem te largar mais.
Aperto-te contra mim sem medo, descobrindo-me,
Conhecendo a felicidade que de mim brota.
A música és, canto teu que me encanta,
voz tua a toar nos meus sonhos mais belos,
Jardim florido em pétalas e miríades de cores.
O teu cabelo doirado é estrofe duma cantiga,
São teus olhos o brilho da alegria pintada
Num soberbo quadro, magnífica paisagem natural.
És voo de águia pairando nos ares ao vento,
Deslizar astuto de um pequeno peixe do mar,
Sabor exótico de uma especiaria estranha,
Tímida nascente dum fio d'água que se torna rio
Correndo as montanhas, vales e planícies
Ouvindo preces, levando choros e sorrisos,
Trazendo em si a beleza ondulante da brisa.
Sou teu, na fragrância a morango e rosas
Do teu corpo, no leve meneio que m'embebeda,
Que me leva numa longa viagem de barco à vela.

És a pedra filosofal que doira um palácio doirado,
Maravilhosa descoberta em retorta d'alquimista,
Sentido irracional na harmonia dos cinco elementos
Intenso requebre que me alenta o coração.
És o elixir da juventude, vontade minha de andar,
Doença saudável desta excessiva saúde doentia,
Regozijo insano, satisfação demente, jubilante,
Arrepio frenético serpeando-me corpo acima
Energizando-me cada célula, a carne minha,
Cada canto recôndito e sensível deste corpo meu.
És a forma do meu sorriso inato e profundo,
O sal que adoça cada lágrima que verto em júbilo
Jorrando-me a face, despecebida, ao teu pé,
Abraçado ao teu ventre como uma criança mimada.
Sinto saudade do teu riso sonoro e espontâneo,
Sinto saudade da tua mão macia no meu cabelo,
Sinto saudades de ti, na tua breve ausência
Mesmo que efémera. Sinto saudade, somente.
És o pão e água que me sacia, o sangue que me ferve.
És-me muito, és-me tudo, és-me cada vez mais.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

No fim

Conto cada dia até ao fim
Neste leito de picos e espinhos.
Cada dia que passa e me deixa assim
Deitado nesta cama de pinho.
Esperando o fim, definho.
De nada me serve continuar,
Desbravar caminho, avançar.
Aqui me quedo e esmoreço
Vencido em acreditar,
Entregue à sorte que mereço.

domingo, 5 de julho de 2009

Saúde enferma

Aqui há tempos apeteceu-me escrever umas coisas sobre o estado de alguns pormenores relacionados com a saúde, do meu ponto de vista. Não saiu nada de especial mas enfim...

O leite da China

Foi o leite em pó da China
Que fez mal à pequenina.
Ajuntaram-lhe melamina,
Família do tolueno,
Mui rica no grupo amina
Para ter mais proteína.
Ficou pior que veneno
E matou a pequenina.

A vacina na África

Nem África se safa.
Já lhe afinfou a sarrafa
Desta nossa evolução
Pois foi a vacinação
Que os presenteou com a SIDA.
Veja-se que grande azar!
Deu-lhes cabo da vida
Só para os tentar salvar.
Altruísta salvação:
Matá-los do coração.
Ficaram por lá a morrer
Entregues à má sorte.
É hábito acontecer...
Ninguém se escapa da morte.

Ir ao bom galeno

Antes prefiro veneno
Do que ir ao bom galeno
E morrer envenenado,
A pensar ficar curado.

Para os ossos, clorato,
Benzil diaspernisóide,
Um pouco de feldspato
Para aliviar a tiróide.
Ácido acrilo-butanílico
Que já fez ganir o cão
Cura o malzinho hidrofílico,
Doença da comichão.
Aos diabetes faz falta
Um copo de insulina
Mas o que a malta prefere
É alcool para beber
Pois desinfecta e anima.
Um cházinho de camomila
Faz elevar a moral
Com força de catrapila
A desbastar matagal,
Um remédio p'ra calvice,
Ainda um outro p'ra tolice
Da vergonha em se ser calvo,
Dá azo à aldrabice
Para enganar o papalvo.
Conquanto a gripe avança,
As aves não têm parança
Nem os porcos estão a salvo
Neste mundo do avesso
Onde um prurido pungente
Precisa de levar gesso
E o micróbio inocente,
Mesmo útil à humanidade
É um perigo p'ra gente.

Autoridade para a segurança económica e alimentar

A cenoura é proibida,
Pela lei da ASAE
Que assusta e intimida
Com cada multa que de lá sai.
Nasce debaixo do chão
Onde vive a centopeia
Traz micróbios da tesão
E vírus da diarreia
Pululando na radícula.
Deve-se lavar com sabão
E enrolá-las em película
P'ra vender à multidão.
Para não contaminar
O repolho, a couve e o grelo,
Em vez de plantadas na terra
Nascem em baldes de gelo.
O peixe também faz mal
Ao coração e às tensões
Vem carregado de sal.
Só os grandes arrastões
Têm todas as condições
P'ra insonso peixe vender
Pois as caixas onde os trazem
São bonitas de ser ver.

As aves do aviário
Vivem bem e com calor,
Num higiénico cenário.
Podem beber água choca
E até óleo de motor
Serve para a paparoca
Pois a ASAE não intervém
É que... quem pode... pode
E quem pode... tem.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Segui as pegadas

Segui pobre, pegadas
Dum rafeiro na areia.
Levaram-me a um lago
A espelhar lua cheia.

Na beira do lago
O trilho acabou.
O rafeiro? Quem sabe?
Nessa margem expirou.

Cavei um cova
Nessa terra escura
Para então encontrar
A sua sepultura.

Jazia já morto
Ao fim do caminho.
Na berma do lago
Morrera sozinho.

Sem eira nem beira
Ficara esquecido,
O rafeiro cansado,
Tão velho e perdido.

Tapei com cuidado
Os seus restos mortais,
O seu corpo acabado,
Já gasto demais.

Um lindo malmequer
Ao lado crescia.
Foi do moribundo
Única companhia.

Decerto ali parou
P'ra se saciar,
Bebendo da água
Límpida ao luar.

Pereceu o rafeiro
Ali abandonado.
Apesar de tão só
Acabou saciado.

Bebi essa água
Que o rafeiro bebeu
Contando cadentes
Estrelas no céu.

Em frente segui
Com passo certeiro
Trazendo no peito
O pobre rafeiro.

Calcorreio agora
Tantas estradas.
Lembro a nostalgia
Das velhas pegadas.

sábado, 27 de junho de 2009

Vontade de viver

Trago no coração a vontade de viver,
A esperança, a emoção de querer, poder escolher.
Trago no coração a paixão, à vida amor
Esta dança que incendeia, melodia de esplendor.

Trago os teus olhos comigo, o sorriso teu tão belo,
Boca tua que beija a face, a fragrância do teu cabelo.
Trago no meu peito a força que me faz forte
E m'alenta e m'enebria e me faz vencer a sorte.

Trago o que desejo, cheiro a mosto calmo e claro
A inteligência do teu olhar, a inocência do teu reparo,
Este fluido que fomenta e por mim flui e m'acalenta.

Trago comigo lírios e uma cama de rosas brancas
Onde te deito e por ti velo afagando as tuas tranças.
Trago-te, vida, porque te tenho e és tudo o que mais quero.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Arte abstracta

Cubo assimétrico
Cristalino, cristal
Estranho vitral
Vítreo, anestético,
Bizarro mural

Cabeça, intriga
Caco de telha,
Cauda de formiga
Uma roca velha
A ser grão numa espiga

Chapéu borboleta
Turbilhão de cores
Sapos fumadores
A dormir na praceta
Ébrios escultores

Copa de sino
Árvore de tromba,
Pinheiro albino
Em penas de pomba,
Gorro pequenino

Movimento estéril,
Cilindro prismático
Rodando pueril,
Volvendo estático,
Vibrar sinemático

Uma porta aberta
Para nenhures
Duma forma incerta
De seda coberta
Deitada algures

Quadrados redondos
Azuis e vermelhos
Losangos e rombos,
Rectângulos oblongos
Já gastos e velhos

Estátua de pedra,
De ferro e ferrugem
Em penas e penugem
Onde cresce e medra
Tão linda marrugem

Torres enormes,
D'aço temperado
Torcido e esticado
Em espiras disformes
Encostadas de lado

Sentimento difuso
De ouro ou de prata,
Inteligente, obtuso
Claro e confuso
Da arte abstracta

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Um pensamento a adivinhar a noite

Algures na distância
Vislumbro o futuro na franja da noite.
Do dia, enxergo o passado da infância
Preso na nostalgia da rubra tarde ao crepúsculo
Num turbilhão de folhas do meu pensamento.
Sento-me hirto. Cada tendão, cada músculo
Se estaca perante a dimensão do firmamento.
Hã tanto que quero fazer numa gota do tempo.
Apenas uma gota é minha neste imenso oceâno,
Grão de poeira cósmica num espaço infindo.
Sinto um arrepio na espinha quase insano.
Enquanto a vida avança eu páro e penso,
Pensar louco, loucura de ser intenso
Que porventura tudo isto é belo, tudo isto é lindo.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O homem ali sentado

O homem ali sentado quando aparece
Até parece
Que não se lembra se se esquece.
Vem. E quando vem, ali se senta
E, sentado, já não se lembra
Nem se atenta
Ou sequer se apoquenta
Com o que vai e acontece.
Anda sóbrio,
Quando não ébrio,
Contente,
Quando não triste,
Luta, se não desiste
E se fala, não calado
O homem ali sentado,
Se ébrio, então não sóbrio
Quando fala, não se cala,
Se calado, então não fala.
O homem ali sentado
Se não se fica, é porque vai
Simplesmente sai,
Vai, passeando em qualquer lado.
Só se levanta se se senta
Ou se deita e se se deita
Fica deitado.
Se não sabe, inventa,
Se não inventa é acertado.
Quando alarga, não se estreita,
Se se entorta, não se endireita,
O inveterado vertebrado,
Osso duro de roer,
O homem ali sentado
Bebe um copo em bom beber.
Está sozinho, desacompanhado,
É solteiro, não casado,
O homem ali sentado
Está sedento, se não bebe
E se não come, esfomeado
Se saciado, fica sem sede
E sem fome, enfastiado,
Quando corre, não parado
Se se não liga, desligado
Não se pesa nem se mede,
O homem ali sentado
Ao encosto da parede.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

A tempestade - continuação

O mar agitou-se em desaire, desvario
Da escuridão do tempo, húmida aragem
Portada a cavalo da negra pesada núvem
Que deslizava para mim sem eu de si ter tino.
Quando a gota de chuva caiu, fugi. Corri
Sem rei nem roque à procura de amparo,
De um abrigo onde poisar. Sem tento, caí.
Levantei-me novamente e novamente caí,
Caindo sobre mim a penitência do desamparo.
Nesse instante verteu-se-me vil impiedosa
A raiva irascível dum gelado jorro em torrente
Estrondeando relâmpagos e trovões, furiosa.
Encharcou-me o corpo, pungindo-me demente
Com afiados pregos, pedrisco gelado e frio
Que se me abatia em força sobre a cabeça nua.
O ímpeto da água corrente se fez num rio,
Rápido que tragava as valetas daquela rua
Levando consigo as folhas do outono distante
Num turbilhão a desaparecer ao largo.
Na doce acalmia desenhou-se um sabor amargo.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Aninhado ao teu colo

Aninhei-me no teu peito
Escutando-o palpitar,
O seu bater tão perfeito,
Sabor a mel, meu deleite,
Fragrância do meu amar.
Constante o seu palpitar,
Do teu coração que toa,
Que me adormece e atordoa
No teu regaço a escutar
Bela harmonia que entoa.
Do teu coração que encanta,
Canto em voz de querubim,
Celestial serafim
Ouço-lhe a voz que me espanta
Dum anjo tão lindo assim.
Canto do teu coração,
Num lindo poema de musa,
Voz de sereia difusa:
Chamamento à perdição
Àquele que os sete mares cruza.
Faz-me cair no sossego
Deitado no teu regaço
À carícia desse abraço
Que me dás e onde me apego.
Corro o mundo num só passo.
Rosa tão branca, açucena,
Cada pétala de ti é céu,
Cada riso é amor meu,
Cada sopro é brisa amena
Que me envolve em fino véu.
Aqui deitado ao teu colo
Não sei se dormir consigo
Receando esse perigo
De te perder, desconsolo,
Nem sequer sonhar contigo.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Tempestade

Sentei-me à beira mar, um belo dia.
As vagas enrolavam a areia como carícia
Ao sabor da ligeira brisa que fazia.
A acalmia lembrava uma paisagem fictícia
Encerrada num belo quadro, moldura de ébano,
Pintado em vários tons de uma cor exótica,
Bela panóplia sob pórtico de arte gótica.
O vento levantou a amarra e, com um brusco aceno,
Zarpou insano levando consigo a doce paz,
Cândida quietude que a acalma e amansa.
Ouvi ao longe a tempestade, o fim da bonança
Num trovão a atroar nos ares voraz
O clamor do tempo que se fazia adivinhar
Com garra de raiva e uma voz irascível.
Semeou-se a procela sem eu sequer desconfiar
Naquele campo de blandícias e serenidade.
Olhei para trás e uma negrura incrível
De atemorizar afoutos, de tamanha a escuridade.
Levantei-me de súbito enquanto me caía na cara
Uma terna gota de chuva tão cristalina e clara.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A padeira peneira

A padeira tinha uma peneira
Para poder peneirar.
Peneirava com peneira, a padeira
Para o trigo do joio separar.
Enquanto a peneira peneirava,
Toda a gente reparava
Em todo aquele menear
E a padeira lá continuava
Com frenético peneirar.
Enchia ao topo a padeira
De farelo e farinha
Toda a peneira que ela tinha,
Peneirando com vigor
A farinha do farelo
Com um peneirar tão singelo
De tão quente o seu calor.
Eram muitas as peneiras da padeira
Com que ela peneirava:
Peneirava o grão com peneira grossa
E ara peneirar a escassa,
Fina peneira ela usava.
É uma catraia diligente.
Na lida não há brincadeiras
Com a padeira peneirenta
E todas as suas peneiras.

sábado, 30 de maio de 2009

A vida, desenho

A vida, essa, se desenha
Em folha de papel fino
Sem esboço e sem resenha,
Desenho sem tento ou tino

Com contorno indefinido
Num padrão em desatino,
Adivinha sem sentido
De rabiscos sem destino

Cada ponto, cada traço,
Cada risco em desalinho
Cada pinta em cada espaço
Cada linha dum caminho

São da ponta do pincel
A forma que de si é ser,
São o relevo dum cinzel
São aguarela a escorrer

São, do lápis que rabisca,
Gatafunhos respigados,
São sombras de vida arisca
Carícias de enamorados

Com tintas a vida pinta
Amor em todas as cores
Traz tristeza a negra tinta
Repleta de dissabores

Se se pinta um coração
Quando se dá uma flor
Desenha-se a emoção
De um afago com calor

Se um olhar é desenhado
Num sorriso colorido
Pinta-se um quadro dourado
Na presença de um amigo

A melancolia é tinta
De núvens dum tom cinzento
E a alegria se pinta
Com a cor do firmamento

Desenho que já se fez
Quando há vida ainda se faz
Contudo, no fim talvez
Se se acaba, se desfaz

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Amor insano

Rasto luminescente de estrela cadente
A rasgar vislumbrante de luz o escuro
Firmamento é como o calor que me é ardente,
Um amor que me é voraz, de tão eloquente,
É-me candura na brandura dum terno auguro,
Sabor doce num trago amargo da dura vida.
É filamento de paixão tecido no coração,
Algo que chama, algo que clama, algo que grita
Iluminando de eco o silêncio numa canção,
Lírica de seda irrequieta no peito aflita
Por cantar ao mundo em perfeita entoação.
É erva que grassa verdejante e rosmaninho,
Estranho cavaleiro andante perdido no caminho
Na demanda da beleza de uma donzela enamorada,
Lindo sonho num pesadelo, sentimento irracional,
É magia, encantamento, condão de fada,
Onda ao vento, seara ondulante, manancial
Oscilante doirado dum tesoiro, trigueiral.
Amor insano é que me dá vida e me mata,
Que me faz forte e fraco, oiro, bronze e prata.

sábado, 23 de maio de 2009

A alegria da bicharada - Parte II

Ouve-se o telefone - Trim Trim!
O burro acorda sobressaltado,
Irritado por acordar assim!
-Quem será? - Pensa curioso.
Atende! Do outro lado fala o boi.
Pergunta-lhe, então, o burro: - Que foi?
Visivelmente furioso.
-Aconteceu algo incrível na praça.
Continua: -Passou mona por mim,
A galinha de mau humor e sem graça,
Vermelha, a ferver e a dar à asa.
Seguia ligeira para casa,
Parecia que tinha levado um murro.
-Que aconteceu? Que tinha ela?
O boi tinha ganho a atenção do burro.
Responde-lhe: -Chamei-a da janela
Mas ela continua sem me dar sinal.
Saí num rompante de casa e segui-a.
Ela nem sequer me respondia
Mas como sabes, o meu charme é fatal.
Contou-me ela que o grande amigo mocho
Que, apesar de gordo e coxo,
Gritava "eureka" e corria como um campeão
Sem lhe importar a sua admiradora galinha.
-Pobrezinha! Pobrezinha!
Ri o burro. -Afinal aí parece haver paixão,
E pelo andar da carruagem, também ciúme
Que a deixou a arder em lume.
O boi dá uma gargalhada com perspicaz observação
E diz: -concerteza, concerteza
É sabido que aí há amor repleto de beleza.
O burro faz silêncio por um instante,
Respira fundo e pergunta apreensivo:
-Será que o mocho conseguiu? Será que sim?
-Penso que sim, meu amigo!
Returque o boi hesitante.
E deve resultar daí uma alegria assim.
-Temos de falar em pessoa.
Combinam um encontro na adega social.
Não discutem por telefone por não ser coisa boa
E trazer água no bico ou algo mais especial.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Adormeço

Olho pela janela do segundo andar.
A cidade cintila com o lânguido pestanejar
De olhos ensonados. O silêncio dos luzeiros
Bruxuleantes à distância do meu vislumbre
Dão nostalgia ao estado dos meus sabores.
A persiana corrida a meio semi-cerra o deslumbre
Escondido na noite que se faz sentir lá fora.
Quedo-me aqui perpelxo. Fujo ao agora.
O tempo deixou de passar. Escuto sem respirar
O escuro da hora que se faz e adormeço a meditar.

domingo, 17 de maio de 2009

Infinito

Sento-me numa pedra e penso o infinito
Nestas margens verdejantes.
E, já sentado nesta pedra de granito,
Penso o infinito,
Que há para lá das estrelas cintilantes.
Elas, tão próximas, parecem que bem se beijam,
No entanto, tão distantes
E mesmo por tão afastadas que estejam
Parecem enternas amantes
Abraçadas no uníssono firmamento.

Rio que aos meus pés corres, aqui sentado,
Lavas os sonhos levadios para o mar
De quem aqui se senta, admirado
Com o infinito magnificente de atarantar.
Leva os meus pensamentos mais além
Onde não haja vivalma, onde não more ninguém
Entrega-os ao oceâno que os dê ao céu
Voando ao infinito onde estrelas vivem
Num imenso vazio negro como breu.
Traz-me de volta a luz do seu brilho.

Ó infinito... tu existes dentro de ti
E o que te contém é a tua existência.
Parte de ti é como tu, na sua essência,
Paradoxo que me fez sentar aqui
E meditar com grã prudência.
Quando aumentas incessante, ficas igual,
Ficas assim, ancorado nessa grandeza universal,
Sem limite que te dê forma
Sem forma que te dê fronteira
Livre de qualquer lei, ausente de qualquer norma.

Estas árvores imponentes por trás de mim
Rangem os ramos impelidas pelo sopro do vento,
Parecem ouvir, em silêncio, o meu pensamento
E cantá-lo ao infinito num frenesim.
Aqui sozinho são a minha fiel companhia,
As flores, as aves, as coloridas pedras do chão,
O gado que pasta a farta erva, épica poesia
Da natureza; somente parte do infinito são;
A outra parte, já de si é infinito
Mote do meu pensar nesta pedra de granito.

Todas as esferas se movem no seu interior,
Neste enorme infinito que intriga e espanta,
Numa perfeita harmonia celeste em esplendor
Excelsa consciência irracional que a razão quebranta.
Possui a sabedoria dos tempos, a filosofia da idade,
Infinito que tudo tem, a mentira, a verdade,
Cada riso, cada choro, o sonho, a realidade,
A ciência racional, cada trama da demência,
Desta loucura de ser o infinito que o envolve.
E tudo no infinito mexe, remexe, volve, revolve.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Mãe

Sinto saudade de ti, de trazer no coração
O tanger das olvidas histórias d'encantar
Cobrindo-me de seda macia a tua mão
Com as carícias que vivi ao t'abraçar.

O teu canto, a lembrança da tua voz qu'amima
É o meu gládio na imane desventura da sorte,
Água pura que me faz são e forte,
Estridente alvorada, estrépito que m'anima.

Ainda coras de júbilo o meu tempo obumbrado
Linda como o crepúsculo encarnado de arrebol
E junto a ti, passeio, menino, ao sol

No calor do teu regaço. O cheiro do teu cabelo
M'alenta e mesmo na cruel potestade do fado
Sorrindo digo mãe, que é um nome tão belo.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Gente, consciência

Gente que anda indiferente
Gente que passeia somente,
Gente feliz que se sente
Gente que se ri de contente,
Que partilha com outra gente
Fazendo delícias da gente
E gente a chorar tristemente;
Gente sozinha e não só,
Gente escutando outra gente,
Gente gentil e clemente,
Outra gente vil e sem dó;
É gente que transia a avenida,
Que enche a rua de vida,
Duma consciência inconsciente.

sábado, 9 de maio de 2009

Forma de ti, amor carnal

A forma, cada contorno, caída
Como excelsa arte da natureza
No chão; Contemplação da vida
Carnal suar de soberba beleza

É o teu corpo estendido na areia.
Longe o pensamento seguindo à deriva.
Apenas a forma de ti se faz sereia,
Musa da paixão, razão olvida,

Escultura elevada no fino areal
Pele macia talhada em luzente oiro
Sob a luz do sol, perfeição natural
A luzir coroa de trigo loiro.

Dormes, serenada ao som da brisa,
Serenata encantada do meu clamar.
Cada desejo meu por ti desliza
Como um rio que abraça o mar.

A forma de ti sem razão ou tino,
Apenas o teu corpo no chão deitado
Entoa numa sinfonia em desatino
Ao coração em chamas, inflamado.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A alegria da bicharada - Parte I

Eureka! Eureka! Gritava
Eufórico o mocho na praça.
Que se passa? - Perguntava
A galinha com um ar de graça
Enquanto ele passava por ela.
Não a ouvira, de tão grande a euforia.
Gritava com tamanha alegria
Que o pardal que dormia
Acordou e se apeou à janela.
Um grande frenesi ficou instalado,
Ouvia-se um zunzum por todo o lado:
-Que lhe terá acontecido,
Porquê... tanto alarido?
-Se calhar anda bêbado ou drogado!
Alvitrava a burra mostrando-se esperta.
Returque-lhe a vaca, de si certa:
-Não o imagino assim. Ele não bebe
Nem tampouco toma drogas.
Talvez seja algum requebro.
-Ainda dormes! Vê se acordas.
Diz-lhe a burra com sorriso matreiro.
-Ele anda nos estupefacientes,
Vejo-lhe isso pelos dentes
E o meu instinto é certeiro.
Só pensas em paixões ardentes.
Mal tinha isto acontecido,
Já circulava no povo um boato.
O mocho que era considerado pacato,
Passou a ser um valdevinos.
Entretanto serena-se-lhe o contatamento
E, sem dizer água vai, volta para dentro
Não dando satsifações a ninguém
Fechando freneticamente a porta atrás de si.
Só pode ser droga, este desdém!
Reafirma a burra enquanto se ri
Perante a vaca deveras atarantada.
Esta concorda. -Ele não anda nada bem!
Não anda nada bem! Mesmo nada, nada!
A galinha, ultrajada, correra para casa
Sem sequer desconfiar que o júbilo do mocho
Lá devia trazer grão na asa
Pelo modo como voava, apesar de coxo.
Chamem o rei para tirar isto a limpo
Clama a multidão que ali se ajuntou.
Chega o rei e a sua comitiva. -O rei chegou!
Alguém repara. Desce do coche a fumar cachimbo
E trupa à porta de quem se pensava doente.
Uma hora depois sai com um ar contente
Ordenando que se disperse a multidão,
Acrescentando: -Hoje é um grande dia p'ra nação.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Paixão num beijo

Os meus lábios, os teus encontram de mansinho
Sentindo ofegantes no teu respirar
O vento a girar as velas do moínho
Que mói cada grainha do nosso amar.

Os teus, os meus beijam com aquela ternura
Que me incendeia, por dentro, de paixão,
O fogo que me queima nesta quentura
De arrepiar. És-me almejada predição.

Com cada mão percorro o teu corpo nú,
Despido e entregue a cada beijo meu
Guardando-os como segredos num baú.

Cada blandícia minha é um abraço teu.
É a tua candura que me adoça o peito
Caído sobre o teu num sublime leito.

sábado, 2 de maio de 2009

Borboleta azul

Borboleta azul, princesa do meu dormir
Foste-me sonho nos dias de menino,
Lábios finos do sorriso que me fez sorrir,
Alegria do meu viver em pequenino.

Pousaste singela na palma da minha mão.
Trazias o céu nas asas mais lindo
Onde me esqueci. Contava-te numa canção,
Conto mais belo num madrigal infindo

Escrito das palavras que não sei dizer.
Serpeavas-me a frescura de um arroio
De água fresca que não cessa de correr.

Eras-me a graça e foi então que te perdi
Arrolado e à deriva num barco salmoiro.
Lenvantaste voo e nunca mais te vi.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Voa alto

Voa alto, ao vento, além
Linda pomba branca. Então
Veloz desce e depois vem,
Vem pousar na sua mão.

Voa livre - diz-lhe assim
O céu é teu, ave tão bela.
Só não te equeças de mim
Deste pobre à janela.

Não o queria a pomba deixar
Ali entregue a si sozinho
Pois foi ele quem a foi salvar
Quando seguia no caminho.

Jazia no chão ferida,
Fundo golpe cortava a asa.
Ele, ao vê-la ali caída
Deu-lhe afago e uma casa.

Naquele dia de frio,
O peito branco, negro sujava.
O sangue que derramava
Tingia de rubro o rio.

Imóvel, na escura terra,
Quase morta de tão doente:
-Triste sorte que o fado encerra,
O desamparo de tanta gente!

Por ela tantos passaram
Com pressa de atarantar.
Outros tantos ainda olharam,
Mas só ele a foi salvar.

Macambúzio, moroso ia,
Quando a vira ali sofrente
A sentir tanta agonia
Numa dor dura e dolente.

Pegou nela com candura,
Com zelo de um grande amigo
E complacente a levou consigo.
Foi-lhe a luz nessa amargura.

Portou-a com todo o zelo,
O cuidado que lhe merecia
Dar. Ela, lânguida, ao vê-lo,
Reatou-se em alegria.

No seu colo queda seguia
Ouvindo o forte bater
Do coração e dormia
Já cansada de viver.

Abraçava-a enquanto ia
Pelo caminho ao vento irado.
Com os braços a aquecia
No calor de um abraço.

Chegado a casa por fim,
Um pequeno humilde lar
Uma cabana singela assim,
Com tabiques a amurar.

O homem que tão pouco tinha
Para a boca saciar
Dá-lhe tudo e então definha,
Passa fome para a salvar.

Tratou-lhe com dedicação
As feridas que a pungiam
E sempre que os seus olhos abriam
Sorria-lhe com coração.

Lavou-a num banho de rosas,
Com pano dum linho fino
Contando-lhe histórias ditosoas
De quando era menino.

Deitou-a numa cama de flores
Colhidas de um belo jardim
Cobriam-na folhas às cores
Com fragrância a alecrim.

De noite quando acordava
Do mais horrível pesadelo,
Ficava contente ao vê-lo
Pois por ela, ele velava.

Numa manhã de sol raiado,
Ela acordou com vigor,
O sofrimento tinha passado,
A vida já tinha cor.

Das chagas que a cobriam
Despira-se-lhe o corpo macio.
As penas de novo cresciam
Enchendo-lhe o peito de brio.

Sai pela janela airada,
Voando alto em liberdade
Como ninfa enamorada.
Sentia da brisa saudade.

Dada volta estonteante,
Com tanta satisfação
Volta p'ra trás radiante,
Vindo pousar na sua mão.

Criou laços de amor
Com aquele pobre mendigo.
Ela, S'algum dia for,
Levá-lo-á sempre consigo.

Voa - diz-lhe em triste pranto
-Voa livre é o qu'eu mais quero!
Voou livre com um canto
A despedir em desespero.

Não deseja ser entrave
Quem dela cuidou. Concerteza,
Ser livre como uma ave
Está na sua natureza.

domingo, 26 de abril de 2009

Povo Luso

Dejecto abjecto,
Estranho objecto
Ora flácido, ora erecto
Pasta mole do recto
Ovo podre confuso
Estúpido abstruso
A faltar parafuso
Tarado obtuso
Pirralho mimalho
Cagalho mijalho
Borralho mirralho
Tresanda a alho
A mamar no...
Sei lá! No vergalho.
Tem mania de esperto
O ignorante encoberto
Nem de longe ou de perto
Acerta no certo
Burro ébrio indesperto.
Merdoso cagado
Cantor acabado
Do trinado do fado
C'o coelho borrado
Deixa um ar abafado
Por todo o lado.
Linguiça, chouriço,
É esterco... pior que isso
Cabeleira de moliço
Porco branco mestiço
Pantomino castiço.
É rabo rabiço!
Vírus febril
Demente senil
Do mais baixo e vil
Caga-se a mil,
Um peido no carril.
Idiota profundo
Com sabor a presunto
Emigrante fecundo
Passado defunto
A contaminar o mundo.
Doença incurável
Pessonha detestável
Torresmo intragável
Carroça inegável
Com bafo desagradável
Irresponsável
Material contaminável.
Pipa de cerveja
Lagarta na cereja
Mosca da vareja
Que na bosta peleja
E excrementos deseja.
Monte de ranso,
Grand'a corno manso,
Fala como um tanso
Com grasnido de ganso.
Ó povo luso!
És! E só de seres... t'acuso!

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Mágua dura

Mato-me de morrer em ti mágua
Dura que m'atormenta.
Sei-me em saber estar longe
Do teu encanto e o negro cinzento
Segue-me de frente
Como um necrófago sedento de mim.
Uma lágrima dolente escorre-me do corpo
Hirto sem vontade de vida,
Sem um pouco de tinta que pinte o vazio
Do qual se me em nada cai.
Segui o árduo caminho que a ti me levou
Por meio de dédalos de espinhos
A espicaçar o corpo, a sangrar a vista
Abraçado a um inocente sorriso
Esperançado ao encontro da tua luz.
Para trás ficaram prantos
Da tristeza de me ver partir,
No passado apenas existe aquilo que não fiz,
Se o fiz por ti e por ti somente,
Certo de sentir o teu perfume rosado.
Travei batalhas de ensandecer
Pelejando o ferro, irascível, já cansado,
Tragando, insano, singelos olhares dóceis
Por os haver visto monstros hediondos
À espereita da janela da intriga
Ávido de te ver o brilhar rutilante.
Tivesse eu, trilhado outros trilhos.
Tivesse eu, travado outras pazes.
Tivesse eu, ter-me entregue completamente
A mim, caminhando descalço sobre as pedras
Aguçadas que ferem os pés, mas os pés.
Tivesse eu, sido arrastado pela corrente
Do rio entregue aos ditames do meu destino
Incerto. Mas assim não conheceria a sede.
Volte-se-me o tempo que já não tenho.
Volte-se-me a fúria da juventude.
voltem-se-me as pacatas manhãs ao sol
A sorver maresia num passeio à beira-mar
Na singela companhia de um terno abraço.
A realidade surge-se-me fundida à ilusão,
E o sonho... já nem sei se sonho,
Se sonhos não tenho, nem sonhar consigo.
Finalmente eis-te surgida flor a desabrochar
Na clareira desta floresta de lanças
A pungir a carne. Imploro um pouco de paz
Que não me deixes penar no abismo imenso,
A gelar nos confins do deserto mais frio,
A crestar nas secas areias da solidão.
Chamas-me ao teu encalço com voz de sereia
E prostras-me ao chão com brado de guerra
Alimentada pelo desdém sem mal te querer
Querer-te coberta com banho de lírios.
Nada posso contra o teu império
Rútilo ao meu olhar, ímpeto a deixar-me
Trevas, nada mais e uma dor no peito
Pesando em mim o peso do mundo.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

O relógio da parede

Na parede, o relógio soa
Lindo trinado de outrora.
Cada nota, saindo ecoa
Do carrilhão afinado
Quando certa chega a hora
Quebrando o silêncio cerrado.
Ouve como o relógio badala
Cantando uma linda balada
Dlim dlão dlim dlão!
Chega a hora, cada badalada
Enche o vazio da sala
Numa uníssona entoação.
Tic tac tic tac tic tac
Como quem diz que ali está.
Mede os ciclos, conta o tempo
E sem tino vai o pêndulo
Andando p'ra cá e pr'a lá
Pois o relógio da sala
Com calma balada qu'embala
Marca as horas que nos dá.

Tic tac tic tac tic tac
O relógio, na parede, a batucar,
Nostalgia na quente tarde
Que não se apressa a passar
Numa leve percurssão.
Chega a hora sem demora! Então
Entoa um hino sofrente
Qu'entristece o coração
Nessa tarde morna e quente.
Vem a noite escura e fria
Trazendo encanto ao fim do dia.
Segue o relógio da parede.
Tic tac tic tac tic tac
À hora as badaladas trauteia
Como se saciasse essa sede,
Essa vontade de alegria
Que às trevas não receia,
Dum sorriso em melodia.
O mundo dorme e ele acordado
Sempre com passo acertado.

De manhã, em alvorada,
Ao raiar da madrugada,
Dlim dlão!
Mais uma hora passada
Badalando de novo a canção.
Volvem os ponteiros incansáveis
Apontando as notas do tempo
Em círculos e voltas intermináveis.
Tic tac tic tac tic tac
À hora certa, um lamento
Dlim dlão
À hora certa a canção.
Quando S'alinham ponteiros
Faz-se mover o carrilhão
E com batuques certeiros
Quebra-se o silêncio da sala
Em serena entoação
Que a quem desperto embala
E a quem dormindo, então
Acorda em terna alvorada
Ao nascer da madrugada
Com boa disposição.

Marca o tempo que passa,
Cada hora, minuto ou segundo
E a sua harmonia tem graça.
Esquece o resto do mundo
O relógio da parede da sala
Que à hora certa badala
Uma balada clerical
Inundando de música a sala
Com um som angelical.
Tic tac tic tac tic tac
O pêndulo oscila libeiro,
Andando de lá para cá.
Dlim dlão
Revolve certinho o ponteiro
Apontando as horas que dá
Sem saber as horas que são.
Também por ele passa esse tempo
E bem certo esse tempo mede
Dando contas à velha idade,
Contando em o breve momento,
Cada passo de efemeridade.
O relógio que tão bem embala
É da parede da sala.

domingo, 12 de abril de 2009

Páscoa

Paixão, amor incondicional,
O sol de esperança que alegria traz,
Renascimento, um novo Natal
Serenidade infinda, tempo de paz

Força de crer numa nova vida
Do mundo d'além que advirá
Hasteando a bandeira da perdida
Felicidade excela pois Ele virá

Sorrir com leveza no coração
Mesmo na dureza da derradeira entrega
A boa ventura do amor sem condição
É a Páscoa resplandecente quando chega

sábado, 11 de abril de 2009

Chegada à floresta dos empalados

A escura paisagem turva o olhar
D'algo que nunca havia pensado ver.
Os necrófagos, em círculo, a voar
Adivinhando o fogo fátuo a arder
Faziam antever o mórbido desenho
Pintado, rosto hostil da bestialidade.
Um imenso sepulcro extenso, tamanho,
Dava um ar de terror, uma outra realidade
No mundo do medo, da aflição, do desespero.
E ei-la, a fúria da ira, do vil castigo,
O feroz tormento do povo deste pesadelo
Que me atormentará em o levar comigo.
Só o cheiro pútrido, fedor acre enebria
A mente e nauseia o espírito mais forte.
Atónito, rendo-me à repugnância em demaisa
A perder de vista. São os filhos da má sorte
Presos aos braços da morte, maõs da tortura
Que não conhece piedade nem clemência
Somente a pungência do ódio, lança tão dura
A dilacerar o juízo e a criar demência,
Ganância mesquinha do poder a tolher a alma
Deixa tantos corpos putrefactos abandonados
Nesta enorme planície. Sente-se nesta calma
A grande tormenta da floresta dos empalados.

terça-feira, 7 de abril de 2009

Bonacheirão

Sorriso alegre em saudação
Lá vem o bonacheirão,
Passo elegante,
Cabelo brilhante,
Cumprimentando e dando esmola.
Uma mão na cartola
Acena a quem vai
Outra na algibeira
Dedos presos à cigarreira
De onde uma cigarro cai.
Fato preto perfumado,
Casaco bem engomado
E de seda um lenço branco
Saindo do bolso, leve espanto
Enquanto segue caminho.
A apertar um giro laço
Negro o claro colarinho,
Faz os encantos do povo
E, apesar de vivaço,
Já não é um homem novo.
Ele é o bonacheirão
Uma pessoa de arromba
Com maço de notas na mão
Que vintém à gente dá.
É benemérito o d'harém
A dar aquilo que tem,
Por ter aquilo que rouba.

sábado, 4 de abril de 2009

És, paixão

És a luz que m'alumia
Resplandecente, um esplendor
És paixão, és melodia,
Cantiga dum trovador.

És lírica em verso escrita,
Soneto onde me perder,
És metáfora em rima rica
Num poema de enlouquecer.

És mélica doçura quente
Que me adoça e acalenta.
És tempero, és nutriente
Da seiva que m'alimenta.

És a fonte que derrama
Água pura que sacia
Este fogo que me inflama
Que me ferve de alegria.

És jasmim, és terna rosa,
Uma flor a desabrochar,
És o sol onde me acho
Perdido no teu olhar.

És a selva, és savana,
Pinheiral negro ao luar
És oásis neste deserto
Onde me deito a descansar.

És musgo verde no chão,
Uma ave que tão alto voa,
És o brado de um trovão
Que ao longe no céu toa.

És montanha, vale e rio,
Ar puro, és brisa agreste,
És o gelo gelado e frio,
Calor com que m'aqueceste.

És o mar bravo e sereno
Oceânico, conto febril
És antídoto, és veneno,
Um jardim em sonhos mil.

És pirâmide do Egipto,
Colosso da Grécia Antiga,
És estrada de granito
Duma aldeia já esquecida.

És marasmo, és espanto
De um velho monumento,
És palácio, és encanto
Das Arábias d'outro tempo.

És, p'ra mim, uma nação,
Outrora Roma, um grande império,
Um sorriso, uma canção
De um menino irrequieto.

És castelo medieval,
Obra de arte renascentista,
Belo fresco num vitral
Pintado por um grande artista.

És riso duma criança
Inocente quando ri.
És manhã da esperança
Da vida que não vivi.

És virtude, és a paz,
Pensamentos geniais,
És amor louco e voraz.
És-me tudo e tudo mais.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Agonia

De arrepiar os pêlos ao mar
Encantado aos olhos da lua
Acariciando uma pedra cinzenta
Macia como as pedras da rua
Por onde me deleito a andar.

De encrespar o pacato pinheiro
Tirando-lhe o chapéu de menta,
Fragrância do eucalipto que cheira
Veneando lentamente à beira,
Jovem, de tão velho sobreiro.

De enfuzinar o silêncio da calada
Savana enrolada no chão de cetim
Afagada em marcha lenta molhada
Do eflúvio cor-de-rosa tom carmim
A perfumar azul o céu, caiada.

De acirrar as calmas pastagens
Bailantes ao chocalho das aragens
Livres esvoaçadas no orvalho da manhã
Caído na pele, frescura forte e grã,
De olhos fechados a zunir miragens.

De dissolver a espuma do deserto
Solvência líquida soluta dissoluta
Duma lágrima a lavar o pranto abrupta
Uma face que já não ri e decerto
Enterrada produndamente em chão aberto.

De morder os tenros lábios da cara
Num beijo solto à quente brisa clara
Carícia dos choupos numa dança insana
Volvendo volúveis no seu leito, a cama
Alcochoada em penas de folha rara.

De efeverescer o sangue do quedo rochedo
Afuguentando o temor das barbas do medo
Saído da terra num dia de tempestade
Sob a chuva seca a enxugar a sã idade
Do ser no longínquo tempo tão só mas ledo.

De acelerar o passo da caneta do poeta
Escrevendo a fúria e a calma, vã quimera
Do sentido de existência carnal e repleta
Da paixão, aquele ouro que a vida esmera.
A agonia de viver enquanto a morte espera.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Sem palavras

Calcorreei o dicionário,
Todo o léxico gramatical
Para encontrar as melhores palavras
Que descrevessem Portugal.

Entrcontro-as e lhes clamo:
- Rimem, palavras... rimem
Rimem como nunca rimaram
Façam-me ente feliz!
Digam lá... descrevam lá este país.

Elas fugiram,
Fugiram como nunca vi...
Horrorizadas!
Fiquei sem palavras.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Poema amargo II

Preso aos crueis ditames do destino
Faminto de má sorte. Apenas a esperança
Alenta a tenebrosa escuridão sem tino
Quer fere, que subjuga, submete, cansa.

Sabê-lo, amargo sabor, paladar azedo,
Cheiro acre repulso que no ar avulsa
Desce-me aos confins do vil degredo
Prelúdio deste descontentamento que pulsa.

A ira torna-se o semblante da História,
O ódio, a sua alfaia que dilacera os justos,
Hedionda hegemonia dos monstros da Memória.

Surge o Homem a vestir pele de serpente
Àlardear, galã, as virtudes da cega justiça
E o mundo, calado e triste, consente.

sábado, 14 de março de 2009

Maresia

Fecho os olhos e a brisa do mar
Traz-me um beijo perdido,
Há muito esquecido, descaído,
Da branca areia macia.
Surge e vem esta maresia.
Um vulto ao vento parece menear
Um doce bailado numa carícia à face.
Sorrio! A vida é aquele breve momento,
O calor que o corpo amima
Que lhe oferece o mel, a geleia real,
O ténue desabrochar de um enlace
Entre o sonho e o entendimento.
Sigo mais alto, mais acima,
Voo por entre as núvens, sopro um trigal
Ondeante, seara infinda, doirada
Coberta com véu de ouro, um tesouro
Numa ilha distante, desabitada.
Respiro fundo o ar salgado,
O fresco orvalho do rebentar das vagas
Túmido no ser quente de frescura.
Inspiro! Deixa-me inspirado
A aura que me segreda com candura
Um madrigal em quentes fráguas
E me traz alento e me acalenta.
Sai-me de dentro esta felicidade estranha
Esta quietude calma inquietante,
Este frenesi quieto que apascenta.
Será o sal da marulha que se entranha
E salga o sangue e tempera a linfa?
Será a triste voz de uma alegre ninfa
Encantada dum mundo muito distante?
Sei que sinto estar no cimo duma montanha
Num dia de trovões e tempestade
A beber o ardor do sol tropical,
Fragor suave exótico de insanidade
Num abraço de alguém muito especial.
Só não quero que isto acabe.

terça-feira, 10 de março de 2009

Quadro

Aquela árvore tem verde copa
Com laranjas àlaranjar.
Por trás dela, há uma janela
Tão humilde e tão singela
Com vista para o pomar.
Logo ao lado, há uma pereira
Tão perto da laranjeira
'Inda sem pêras p'ra tirar.
A macieira tem maçãs
Já bem maduras p'ra manjar.
Os diospiros e os figos
Que são fruta de deliciar
Já dão cor a esta paisagem
Que se pode contemplar.

A janela daquela casa
Com vista para o pomar
Tem portadas coloridas
Às riscas muito garridas
Abertas de par em par.
No beiral, espera um pássaro
Pequenino a piar.
E os ninhos, já velhinhos
Servem só para enfeitar.
Da rua vêm-se escadas
Para a porta principal
E o trilho que lá leva
Toda a gente que lá chega
Passa pelo fontanal.
A relva mui bem regada
Cobre de fresco o jardim
Nesta casa perfumada
Com fragrância refrescada
A rosmaninho e alecrim.
Vê-se uma horta asseada
E muito bem cultivada
Bem ao fundo do quintal.
Também se vislumbra a vereda
Por onde tão linda e leda
Segue fermosa, uma pequena,
Que vai para o canavial.

O portão que fecha a quinta
É de ferro forjado
Bem tratado e trabalhado
Com figuras a embelezar
E o gradeamento que a cerca
São lanças muito afiadas,
Refinadas e alinhadas
Dando ares de encantar.
A rua que passa em frente
É ladrilhada em granito.
Desemboca numa praça
Repleta com tanta gente,
Ora triste, ora contente,
Num frenesi aflito.
À tarde bate o sol
De fronte à porta principal.
De manhã, quando resplandece,
Ilumina e aquece
Aquele pequeno pombal
Que por trás do pomar aparece.

Mesmo antes da vereda
Ergue-se nostálgica meda
Com palha p'ra criação.
Voam patos e galinhas,
Borboletas e joaninhas,
Correm gansos pelo chão.
Há também o grado gado
A pastar longe no prado
No sopé daquele monte
Onde se encontra a nascente
De água fresca e corrente,
Manancial da velha fonte.
E lá se sacia o gado
Nesse rio calmo e delgado
Que atrás do pasto se esconde.

A montanha encosta ao céu
Azul de dia brilhante
A alegrar o quadro
Apoiado na estante
Que encima a lareira.
Ao lado está a janela
Tão humilde e tão singela
Com portadas coloridas
Às riscas muito garridas
Abertas de par em par.
Pela janela vê-se o pomar
Do quadro da lareira,
A macieira e a pereira
E também a laranjeira
Com laranhas àlaranjar.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Penso em ti

Penso em ti em demasia,
Do cair da manhã
Ao romper do dia,
Do calor do fogo
À noite fria
Do triste choro
À alegria.
Penso em ti quando não estás,
Pensar em ti, saudade traz
Ao meu coração sozinho.
Penso em ti, no teu carinho,
No teu abraço acalorado.
Se então durmo ou acordado
Penso em ti por sinal.
Penso em ti e corro mundo
Do cerúleo celestial
Ao mais escuro profundo
Dum doce beijo de um amor carnal
À fervura de um segundo.
Penso em ti, tanto te amar,
Tanto te querer em desejar
Preso à luz do teu encanto
E te veste um fino manto
Da seda do meu sonhar,
A tecer-te uma canção
Por querer-te tanto, tanto.
Penso em ti, pérola rubra,
Fulgor forte de trovoada
Em serena entoação.
Penso em ti, ó minha amada
Cujo véu te envolve a cinta
Quero que o meu corpo cubra.
Penso em ti, mulher mais linda.
penso em ti e em ti penso
Quando o sol vai e quando vem,
Até ao fim, desde o começo,
Penso em ti e mais ninguém.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Marcha Nocturna

Corpos silentes de pensamento
Entregues ao lascivo desvario
Dançam e bailam com nada dentro.
Essa é a marcha da noite atirada ao rio
Cuja corrente mancha o branco da dignidade.
O ritmo aumenta e a dança frenética
Move bocados de carne sem mais nada
A lembrar um traço de humanidade,
Qualquer moral, juízo ou ética
Ou mesmo um reminescente duma tímida
Manifestação racional.São bichos, bestas
Irracionais a bailar sem rei nem roque
como couves a cozer numa panela ao lume.
Diversão é o seu lema, farras, festas,
Serem escravos da indústria, estrume
Mal cheiroso com um diligente toque
De perfume, intensa fragrância a rosas
A dar um sabor a mel ao aparato.
Monstros colossais, colossos sobre rodas,
Máquinas de guerra a subjugar inumanamente
A mente dos fracos, comprimidos num frasco
A criar ilusões, um sorriso quase demente.
Já não são o ferro e o fogo a fazer mártires,
A matar a existência carnal porque a morte
Agora é outra. Já não se dilacera carne
A esvair-se em sangue. É bem pior a nova sorte.

domingo, 1 de março de 2009

Apatia

Ou se entra ou se sai,
Ou se vem ou se vai
Ou se levanta ou se cai
Ou se diminui ou se aumenta
Ou se ri ou se lamenta
E a vida avança.
Se não se sai nem se entra
Nem se vem nem se vai
Nem se levanta nem se cai
Nem se diminui nem se aumenta
Nem se ri nem se lamenta,
A vida pára, não anda.
Resta apenas ritual
Preso à imaginação infinda do ser,
Rotina dum viver
Apático e somente a esperança
De um olhar ilumina a escuridão
Onde uma lágrima de melancolia
Se torna sinal da emoção
De uma prova de alegria.
Ah! A graça... Não há graça
Pois o mundo pesa e passa.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Quem sou

Levantei âncora e zarpei a esmo
Na eminente demanda de me encontrar
Para aprender quem sou eu mesmo,
O que me é sonho, o que me faz sonhar.

Voei com asas d'águia e garra de condor
E vi-me reflexo do sol d'alegria que m'aquece.
Desci aos confins da sombra que me traz dor,
Imensa bruma da tristeza que m'entristece.

Procurei-me num pequeno búzio colorido,
Amor esquecido numa branca praia muito além,
Numa flor desse jardim que é um grande amigo.

Naveguei pelo mar ao fim do mundo até.
Acabei, cansado, a encontrar ninguém,
Um estranho alguém quem não sei quem é.