terça-feira, 30 de dezembro de 2008

A galinha, o ovo e os outros

Um dia, diz ao burro o boi:
-Tenho para ti uma adivinha!
Entre o ovo e a galinha
Quem nasceu primeiro, quem foi?
-A galinha! A galinha! - Pipilava
Lá ao fundo da tasca.
Ouviam, o pardal e a cabra
A conversa numa indiscrição rasca.
O ovo! O ovo! - Gritava a outra
Com més a ouvir mais além.
Para além deles e do porco
Não se econtrava mais ninguém.
-E isto que parecia estar morto.
Responde o burro. - Pergunta afouta
Mas carecida de pertinência.
Continuou! - Sem substância ou ciência.
Não se enquadra na perfeição
Numa teoria bem fundamentada
Nos princípios da evolução.
Afinal... Foi assexuada
A primeira forma de reprodução.
Que relação isso tem com o ovo?
Vociferava a cabra de novo.
O boi não tinha a mesma opinião.
-É uma adivinha interessante,
Muito séria e elegante
E serve para reflexão.
Dizia-o enquanto lambia os beiços
Do licor que havia bebido.
-Dizer que foi o ovo ou a galinha-
Remendava o burro apreensivo -
Só dá azo a preconceitos.
Não há método científico que corrobore
A veracidade da resposta à adivinha.
Havia já uma grande algazarra
Lá ao fundo, entre a cabra e o pardal.
Tudo, porque para o boi, esta questão
Lhe trazia muita satisfação
E um deleite sensual.
O porco já estava a ficar cansado
De toda aquela fanfarra
A zuir por todo o lado.
Queria ler, em paz, o jornal.
-A galinha! Dizia o pardal com convicção.
Tinha nascido do ovo posto pela mãe
E, de todos, sabia-o melhor do que ninguém.
A cabra gostava de ovos, era casmurra
E resmungona. Era bem pior do que a burra.
Diz, finalmente o burro - Vou-me embora.
Antes que concluísse a despedida
Ouve-se uma vozearia lá fora
Numa fúria intensa e desmedida:
-Metam-se na vossa vida!
-Metam-se na vossa vida!
Cacarejava a galinha muito irada.
-Mas que povo sem ideia:
Só falam da vida alheia!
Levantou-se um banzé na bicharada
Mesmo à porta da taberna.
O burro já tinha dado à perna
E o boi seguira-o logo atrás.
Os outros, só ao fim duma hora
Resolveram as quezílias lá fora
E foram para as suas casas em paz.
Tanto alarido causado por um quesito
Com um propósito tão esquisito!

Sérgio O. Marques

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Era natal

Caminhavam, há muito, no deserto quente,
Ermo ao dia e nas noites mais escuras e frias
Grandes sábios das três partes do oriente
Seguindo o astro das antigas profecias.

Senhores d'avultada riqueza de prata, d'ouro
E dos velhos livros do antigo conhecimento
Venceram intempéries, desafiaram o tempo,
Na insigne demanda ao maior tesouro.

Numa cabana moribunda vestida
Encontraram a humilde Verdade em corpo e Vida
No sorriso da Criança que ali nascera.

Foi conjuntura do cosmo, dança universal
Que lhes ensinou o surgir duma nova era.
Era natal, então. Era natal.

Sérgio O. Marques

domingo, 21 de dezembro de 2008

Urro Patriótico

Sem da generalidade a grande perda,
Categoricamente demonstrando
Aquilo que urge demonstração:
Em Portugal é só merda,
Mesmo merda por toda a nação,
Por cá, por lá e por tudo o quanto é canto.
Cora-se a Europa, amarelo pálido
De emético enjoo à proa balança
Deste filho mimado, imundo, esquálido
Estúpido garfo na mão a encher a pança.
Enterrem-se portugueses,
Europeus de palmo e meio
A deitar fora, copo cheio
Vinho maduro dos falsos burgueses
A alienar o bem alheio.
Só gnomas e mais gnomas,
Preconceitos, a par preceito
De fazer tudo, nada de jeito.
Crianças a brincar às bonecas,
Tão lindas, tão tarecas.
Bonecas a fazerem de menina
Com uma boina verde na mão.
Menina, que não se anima
E, quando chora, chega a prima
A fazer festas na crina,
Mais mimando a pequenina.
Avestruzes! Cabeça erguida ao chão!
Tapem com o nobre orgulho nacional
A cara de terra escura, odor a orvalho,
Tremoços, amendoins e noz
Embalçonados ali mesmo, na adega social,
Cêpos ressequidos de carvalho.
Fazer buracos também é luta!
Suínos ébrios a roncar bovinos,
Caninos a latir caprinos
E flatulência cantando selos
De bocados do país nas calças.
Vão à loja em camisolas de alças
A mostrar embostado corpo pedreiro
Emboçados como camelos
Andantes por dinheiro.
Ide para a escola e aprendei maquinação!
Ide... Porque não?
Maquinar é o que é preciso.
É isso e um pano liso
Para engraxar todo esse pessoal
Que mais merda faz em Portugal.

Sérgio O. Marques

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

No destino

Sento-me aqui hoje,
Nesta áspera pedra
Que amacia o meu corpo,
Finalmente no meu destino.
Cheguei onde outrora quisera.
Agora? Agora já não queria.
Agora já não tenho aquela força
De ser estrénuo cavaleiro andante
A travar batalhas em constante
Alvoroço. Não vivo fechado,
Preso sob a égide envolvente
A escurecer o céu ao por e ao nascer
Do sol em cada tarde, em cada manhã,
Em cada crepúsculo em si a trazer
Aquele cheiro que me é saudade
Mas, por fim liberto, em liberdade
Decido cá ficar, a sentir na face
Este calor que um dia me arrefeceu.
Da viagem feita, colhi apenas
Em cada caminho de terra, pequenas
Pedras coloridas que me agradavam,
Não por serem bonitas ou brilhantes,
Simplesmente pela sua cor a pintar
O escuro chão, último companheiro.
Aqui sentado, admiro-as, admiro-lhes
A coragem de serem paisagem,
De se poderem tornar grandes palácios
E de nos ensinar aquilo que somente
Nós teríamos desejo de aprender.
Jogo-as sobre este musgo molhado,
Paladar húmido da velha nostalgia
Para que ensinem ao próximo eremita
Os seus sonhos mais profundos,
As suas aspirações na sua senda,
Para que quebrem seus escudos
E os mostrem ao mundo e o mundo a eles.
Quem sabe se não encontrem aqui paz
E que, juntos, construamos um castelo,
Um lar, uma família unida
Por laços de terna amizade.
A minha viagem terminou aqui.
Não quero mais voltar atrás
Nem conhecer o que desconheço.
Já não vou até ao mundo
Nem espero que o mundo venha até mim
Mas, se este um dia bater
De mansinho à minha porta,
Deixá-lo-ei entrar e sorrir comigo,
Sorrir comigo e abraçá-lo,
Abraçá-lo como a um amigo.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O vaquedo

Um dia passei no prado
De manha. Era bem cedo.
Quão imenso era o vaquedo.

Mui cedo, um certo dia,
Caminhava eu pelo prado,
Desperto e bem animado.
Perdendo a vista se via
Farto pasto em demasia
E um vaquedo asseado.

Eram vacas às bolinhas,
Com pintas e estrelinhas,
Gordas, medias e magrinhas
A pastar um pasto grado,
Comendo as ervas daninhas
Que crescem por todo o lado.

Perguntei, sem qualquer medo
Àquele todo vaquedo:
Que pasceis com convicção?
Comemos ervas verdinhas
Sem ossos e sem espinhas,
Sem fressura ou coração.

Grandes vacas, pois então,
Um vaquedo de espantar,
Vacas boas a pastar.

Sérgio O. Marques

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Fizeram-me a cama

Fizeram-me a cama
De tábuas de pinho,
Com mui fina colcha
De lã e de linho.

Dos lençois, as flores,
Brilhava cetim
Fizeram senhores
Essa cama p'ra mim.

Duas almofadas
Cheiravam a seda
Qual' história de fadas
Tão linda e tão leda.

Quentes cobertores
A cama a cobrir
Puseram senhores
P'ra eu lá dormir.

E lá me deitei
Para descansar
Ficando a dormir
Sorrindo a sonhar.

À noite acordado
Com frio e tão só
Fora ali deixado
Sem pena e sem dó.

Cobria-me um trapo
Sem eira nem beira
A roupa, um farrapo
De serapilheira.

Levaram a seda,
Cetim e o linho
Deixaram-m 'à berma
Tão só e sozinho.

Impaciente espero
O sol do mei'-dia
E o desespero
Será alegria.

Esses tais senhores
De casta tão pura
São os dissabores
Da triste amargura.

Sérgio O. Marques

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Um cinzento só

No século de setecentos talvez,
Ouvia o neto, o avô, seu saber
Num tempo que, no mundo eram só três,
Os pinheiros erguidos ao amanhecer.
Árvores raravam o cinzento da paisagem.
As pedras escuras, foscas, escurecidas
Pelo breu do consumo coravam a imagem
Do preto e branco das cores sumidas.
O verde há muito esqueceu o quadro
Azul do céu, melancolia enublada,
Choro ácido sobre o mar irado.
O constante silêncio é som de nada.
Dizia, então o velho, franzindo a fronte:
Há muitos anos atrás, não era assim.
Cobria, verdejante, um manto cada monte,
Cada planície, cada vale, numa cor sem fim.
Havia pássaros pipilantes, bailarinos
Voavam pelos ares, numa algazarra,
Festa de encantar dos pequenos paladinos
E os peixes no oceâno eram farra.
Os brilhantes raios de sol raiavam
Os límpidos areais banhados de sal
Macios, sedosos, fragrantes, emanavam
Fragrância a fresco e maresia jovial.
Deslumbrantes seres ornavam o planeta,
De vida de um equilíbrio quase perfeito,
Estrénuo movimento de solitário cometa,
Tão terno calor que nos aquecesse o peito.
O menino perscrutava atento e sonhava
O seu futuro. Do passado nada esperava,
Morto e enterrado nos livros de velha capa
Perdidos num reino que não vem no mapa.
Pergunta, sereno, com olhar apreensivo:
Que será de nós, aqui sozinhos, aqui sós?
Inspirou e expirou lentamente, meditativo
E numa pausa repetiu: Que será de nós?

Sérgio O. Marques

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Homo-coprofagia de escadas rolantes

Humm! O sabor, o cheiro, o paladar
Em ventos de metano e "je ne sais mais quoi".
Pensa alto... enquanto sobe o patamar,
Augando, subindo quedo
Desejando e... Ena! Sei lá!
- Que venha o flato, que venha cedo!
Excita-se, excitação de fome
Sede de alimento, sede de comer,
Fragrância de ensandecer.
-Iahm! Manda rápido que bem se come!
À frente, glútea prega balouça
Enquanto, quedo, sobe atrás
O seu nariz lá se pousa
Esperando a boca o que lá se faz.
Sobe parado, agora
Vai quieto e não demora,
Não é como era dantes!
Dantes, as escadas
Eram paradas
E não... rolantes.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Capitulação

Por fim capitula! O meu inimigo
Prostra-se diante a fúria do destino,
Fado que lhe impingiu à vida castigo.
Então chora, como chora um pequenino.

Lacrimante, face húmida de dor,
Não o arremeti, não pendeu à minha mão
Sobre a malha de espetos desta aversão
Por nós tecida. Foi só sina, foi horror.

Regozija-me? Nunca! Alegra-me? Tampouco!
Esta chama de vitória, este ser afouto
Que não fui nem faz de mim campeão

Extingue-se no regaço do tempo.
Agora, resta-nos um abraço por dar.
E a amargura? Que a leve o vento!

Sérgio O. Marques

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Religião

Crença de quem não pensa,
Consentir-se no que se sente:
A paz, clamor da mente,
Serenidade imensa;
Fervor no desejo de amar,
Trilhando o caminho da felicidade
Num cálido procurar
Incessante da Verdade;
Beber de mãos vazias
Da água pura que alimenta
As nascentese mais luzidias,
A fonte de vida, de amor
Da Palavra que apascenta
Em todo seu esplendor;
Sorriso de quem vem contente
Perdoar alegremente
Entregar-se ao próximo:
Sacrifício máximo.
Religião não é começo ou fim,
É voz de querubim em canção
A saciar o coração.
É ser-se completamente,
Sermo-nos plenamente.

Sérgio O. Marques

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Viagem

As vagas enroladas no branco areal
Apagam as pegadas desta viagem
Pelo caminho trilhado sob o ardente sol
Iluminando o céu, cerúlea imagem.
Sigo o tropel, com passos de algodão
Até ao rio que no mar se aninha
Onde cada abraço é turbilhão,
História de encantar que, então,
Se resume a uma adivinha.
Surgem, assim, nesta senda
Os amigos que, no triste pranto,
São-nos a companhia em contenda,
A alegria, o doce encanto.
Espreitam-me cada inimigo,
Cada pedra que piso no caminho
Semblante deformado, grande perigo,
Gotas de cicutina num espinho.
Apraz-me saber o que procurar,
Não sei bem onde te encontrar,
Se te conheço e onde estás,
Sei que irei para onde tu vais
Sem não mais voltar atrás
Pois o trilho não é mais.

Sérgio O. Marques