domingo, 25 de abril de 2010

Ensaio sobre um balde de lavagem

Estava um balde de lavagem
Poisado num campo baldio.
O ministro, sem perder tempo,
Logo lá mete o focinho.
Comia como um grande porco
E com gula de esganar.
Outro ministro lá mete as fuças
Com gana de o acompanhar.
Dois porcos a deglutir
Sem esmero ou qualquer zelo
Ajuntou-se outro ministro,
Inclinando-se no gamelo.
A lavagem era tanta,
Pois o balde era enorme.
Convidaram os seus amigos
Para ali matar a fome.
Só comiam, só comiam,
Só comiam, só tragavam
E para nem perderem tempo
Enquanto comiam, cagavam.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Humilde

Ao maior ás observei:
- Dos teus feitos não há memória
Nos meandros da história.
Porventura sentes-te rei,
Das olimpíades tens grande glória
Ó campeão dos campeões!
- Sinto-me como qualquer outro alguém.
Apenas um, somente um Homem
Entre os cinco mil milhões
Desta imensa Humanidade.
Então pensei:
- É um vardadeiro rei
No palácio da Humildade.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Carta de um filho único a uma mãe viúva

Sou nada, nada valho,
A insignificância é valor meu,
Uma migalha, um bugalho
São bem maiores que eu.

Sou fraco como sou,
Sou uma pedra tão oca e dura
Sou uma planta que secou
Um dos filhos da amargura.

A dor que me lesa e sujeita,
Meu desbotado peito não suporta
Desta vida que não s'endireita,
Que teima em manter-se torta.

Cansei-me de respirar,
Perdi o alento, a emoção,
Perdi o amar, o odiar,
Nem sei se tenho coração.

Já não sei o que é a alegria
Dos tempos que fui petiz.
Não me lembro se sorria
Nem se outrora fui feliz.

Lágrimas não cessam de jorrar
D'olhos meus salgando o chão.
A penumbra é o meu clarar,
A minha luz é escuridão.

Ando só em cada dia,
Temo o mundo, a multidão.
Sou minha única companhia,
O meu refúgio é a solidão.

Pungem-me, impiedosas, a alma,
A ânsia e a angústia feroz,
Perturbando a paz e a calma
Numa irada fúria atroz.

Não desejo mais caminhar,
Andar em frente, ir mais longe.
Estagnei neste lugar
Sem ver o céu ou o horizonte.

Sou livre em tão vil desterro
Sem arbítrio ou vontade,
Vivo insípido, sem tempero,
Sem mentira, sem verdade.

Não vejo a um palmo à frente
Por onde o meu tino erra.
É cerrada, a bruma ardente,
O nevoeiro que se, em mim, cerra.

Não vejo razão em viver,
Cá vou indo em vão motivo,
Se nasci para morrer
O mal maior foi ter nascido.

Sei que, só, te vou deixar
Entregue a ti e mais ninguém.
Oiço e sinto o teu chorar,
Triste pranto que aí vem.

Desculpa a minha fraqueza,
Maleita que anda comigo.
Contudo, te deixo certeza
Que estarei sempre contigo.

Despeço-me nesta linha
Esperando encontrar do além,
Como única graça minha,
O teu perdão... terna mãe.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Sorrateiro

Num rasgo para o abismo
Sorrateiro sobre a mesa
Ancora-se esquálido silogismo
Flutuando na estranheza.
Cai o jarro ao chão
Na corda do luar anterior
Solta por um fio à mão,
Poisada por um cobertor
Nas pálpebras de um furacão.
As folhas rodopiam no prato
Onde, pelas árvores, crescem raízes
Sorvendo flocos de neve felizes
Crestados no meio do mato
E, nas pontas, com péle entalhe,
São rodas de codornizes.
Afim, vem camponês, trabalho
Corado de rosmaninho em casa
E um passarinho pintado
Cava a terra bramindo a asa.
Bica a água dum rio ascendente
Às núvens na cabeceira da cama
Donde pende um pingente
Trazendo uma floresta de marfim
Amarela de azul, trama.
Um micróbio grande assim
Traga um dinossauro gigante
E a medusa floresce num jardim
No bolso de um janota elegante
Vestido de pinguim gelado
Num penedo chorando deitado.
Uma bolota salta no asfalto
Da telha dum telhado cavo
Suportando a mansão da janela,
Junto ao solo, bem alto,
Abrindo para fora do favo.
E tudo isto num chapéu.
O mar desprende-se do céu,
Deslizando do véu
Seguro por uma gota em Marte
Pingando estandarte.

domingo, 4 de abril de 2010

Um ramo de oliveira
Traz no bico pomba branca.
Pelos ares, voa ligeira,
Voa ágil, serena e franca.

À deriva no tormento,
Uma nau navega errante
Sob o negro firmamento,
Sob um escuro incessante.

É a luz, a pomba branca
Que alumia a nau perdida
O ramo é a esperança
E a nau... essa é a vida.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

"Alegrai-vos", dizia-o

"Alegrai-vos, vós em pranto
De quais lágrimas salgam a terra estéril
Sem descanço
Pois negras núvens nada mais trazem senão
Chuva de água doce que a torne fértil.
Alegrai-vos, vós que chorais
Sem esperança no coração:
Regai-a, deixai-a florescer,
Não a deixeis perecer
Pois o destino reservar-vos-á nada mais
Senão cálida consolação.
Alegrai-vos, vós que vos fere o caminhar
Por caminhos de noite e melancolia
Pois só a alvorada poderá raiar
Trazendo alívios dum explêndido dia.
Alegrai-vos, vós, viventes na solidão
Porque é-vos grande riqueza, pobre companhia.
Alegrai-vos, vós em tormento
Pois nada mais vos espera que bonança e mansidão."
-Dizia-o numa era de ódio e sofrimento.