quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Mar incerto

Navego nas estranhas águas calmas
Do mar da incerteza. Será que vou?
Será que venho? Será que me banho em palmas
Com flores daquilo que não sou?

Navego nas estranhas águas quietas
Do mar da vida. Não sei! Indeciso,
Não vejo o rumo. As palavras certas
Nem as tenho quando as preciso.

Navego nas estranhas águas foscas
Da rua. Ferem a paisagem casas toscas
E moínhos que nada moem senão pedaços.

E os traços? Não enxergo os traços
Do sentimento. Oiço apenas a harmonia
Ao longe que me esperança e inebria.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Travessia da floresta dos empalados

A pútrida carne içada na paisagem tenebrosa
Envolve fétido ambiente sobre nós abatido
Aquando da travessia horripilante e desditosa
Da floresta erguida num nefasto ermo aurido.
Olho em volta. As carcaças fedem ao vento
Já foram gente com coração, alma e amor
Com ensejos de alegria e ensejos de lamento.
Agora nada. Corpos podres vazios plantados
Como pinheiros num pinheiral de terror,
São pesadelos saídos dos confins do pensamento.
Zarpamos velozmente como pássaros assustados
Sem rei nem roque, sem saber do sul ou norte,
Seguimos por entre a multidão dos empalados.
As lágrimas lavam-nos a face, salgadas
Irmãs das náuseas que nos fazem prostrar.
A travessia é longa nestas horas demoradas,
Horas mórbidas numa desventura de atarantar
Que fez tremer o mais intrépido e destemido
Guerreiro. Subitamente surge para me acalmar
O fim deste longo e vil caminho percorrido.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Nasceu o Rei

Num rústico estábulo
Dormia, pequenino,
Sereno um Menino.

Numa manjedouira em madeira
Nascera o Mestre, nascera o Rei
A Luz do mundo, o esplendor,
O Sol da justiça, a Palavra d' amor.
Numa cabana tão pobre
Aconteceu o milagre
Que o mundo mudou
E uma nova Era s'alevantou.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Lembras-te

Lembras-te dos cálidos momentos
A olhar as núvens dando a mão
Seguindo serenas no firmamento,
Tão bela recordação?

Lembras-te da velha que sorria
Naquele banco de jardim,
Olhando ares de zombaria
Quando olhavas para mim?

Lembras-te da catraiada
Que corria frenética pelo caminho
E de tanta gente animada
Que passava de mansinho
Quando o mundo era mais nada
Senão o nosso carinho?

Lembras-te desse amor meu e teu
Que em tempos nos jubilou?
O que lhe aconteceu,
Pois o viço perdeu e murchou?

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Cornucópia mamalhuda

Tripas de fora
Cabelos em pé
Uma pinça na escora
Rabanadas com puré
Empadas esfarrapadas
Fuligem da chaminé
Doi cães escarpados
Voo de libelinha
Vinho na pipa
Peido de doninha
Rochedos espancados
Com uma ripa
Chimpanzés apaixonados
Por coisa bonita
Um gato ciano
Um rato amarelo
Botas de piano
A servir de chinelo
Cartas de tinta
Tinteiros de pasto
Erva que pinta
Um daninho nefasto
Uma grosa de pregos
Enfiados na areia
Felizes e ledos
Com diarreia
Mofa a catinga
Num charco de terra
Água que pinga
Se não emperra
Uma camisa
Em forma de flauta
Uma panela lisa
Com pernas de pauta
Cheiro a xadrez
Polido de milho
Rabo de rês
Ao longo do trilho
Tábulas redondas
Com laços na crina
Tontos e tontas
Pulando-as em cima
Limonada de galhardete
Para animar dissidentes
Flores em ramalhete
No aparelho dos dentes
Cornifoliado
No meio do Nilo
Um bolo folhado
Vendido ao quilo
Estojo de estilo
Ora bem ora mal
Isto e aquilo
Et caetera e tal

sábado, 12 de dezembro de 2009

Injustiça

Monstruosidade imane da sorte inane
Ó vil desgraça,
Ferida que não sara, dor que não passa
Ó fraca morte que mataste o amor
Grito do escuro, das trevas clamor,
Ódio ardente que medra e grassa
Aço pungente que esmaga e amassa
Mão do mal que mois a vida.
Ah! Puderas tu seres esquecida
Puderas tu andares perdida,
Algures esquecida, algures penada.
Ó melancolia entristada,
Dureza da iniquidade
Que cega os olhos ao justo,
Aos homens de boa vontade,
Encarceras a liberdade.
Ó injustiça da justiça de um mundo injusto!

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A pescadeira

-Quem quer carapau do nosso mar...
(Vai brejeira, a pescadeira,
Pela rua àpregoar!)
- ... E sardinha vivinha a saltar?
Ó freguesa venha ver
O que tenho p'ra vender:
Maruca que é uma beleza,
Boa pescada p´ra cozer.
É barato... concerteza!
Já ao longe se ouvia
O vozeirão da peixeira
Como toque de alvorada
Mesmo ao romper do dia.

-De chicharro, um quarteirão,
Quero eu senhora minha
E, p'rà brasa do fogareiro,
Outro tanto da sardinha.
-Olha que bela pescada!
A vendedeira de peixe
Cantava-lhe bem animada.
-Fica para outra altura...
(Reponde-lhe a velha a sorrir)
-Não te vou comprar mais nada!

A varina torna àpregoar:
-Quem quer carapau do nosso mar
E sardinha vivinha a saltar?
A catraiada animada
Que também por lá andava
Imitava-lhe o pregão
Em perfeita entoação.
-Ó freguesa é barato!
A motejar a peixeira
Que não gostava da brincadeira,
Gracejava um gaiato.

Ia à vida, a cantarolar
Por outras ruas, outras praças
O seu distinto pregão.
Em qualquer sítio, qualquer lugar
Vendia-o à multidão
Com o seu ar sorridente
No tempo de antigamente.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Viagem do futuro

Abre-se um rasgo num lapso temporal
Em vozes distantes voltadas à mente
Sobre o pano estendido, escuro sideral,
Dos ciclos imensuráveis de tempo ausente.

Dos breves momentos de estranha loucura
Vêm fluidos psitrónicos de estranheza.
Alienantes luzeiros na noite escura
São lunáticos sussurros de sã beleza.

Marcam-se os ciclos de indícios ao pensamento
E o destino surge do lugar das estrelas
Onde o futuro lido se vai escrevendo.

Espectros do que foi, do que é, do que será
Esvoaçam num relance. E, num mundo
Que s'adivinha, o futuro s'adivinhará.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A casa do eremita (O grito da loucura)

Algures nos confins do bosque abre-se uma clareira
Ao fim dum trilho de penitência. Da luz ao fundo
Do caminho ergue-se uma pequena casa em madeira
Do velho eremita solitário. Aparece no fim do mundo
Como um oásis no deserto, um templo há muito perdido
Onde não há eira, não há beira nem passa o tempo.
Tudo pára, tudo espera, tudo é vida, é ser profundo,
Reverência à natureza, longo deleite dum momento
Onde padecem insanos desaires de toda a lida vã.
O pio das aves é harmonia dum arrulho de embalar
Num acordar sereno trazido no orvalho da manhã.
O correr de todas as luzes citadinas são pirilampos,
O retumbo cavo da sirene de um navio a entrar no cais
É o cucuar de uma curuja que paira sobre os campos,
A música que encanta de um preciso relógio de parede
É o chinfrinar de uma árvore apinhada de pardais,
O pranto de uma criança perdida no meio da multidão
É o ténue ganido de um cão que procura matar a sede
Mas que vive livre numa felicidade estranhamente selvagem.
O incivilizado eremita é o inimigo da civilização.