segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

No carnaval

Neste dia
De euforia
Divertem-se os foliões.
Inebriam-se,
Extasiam-se,
Viciam-se multidões.
Vão doentes,
E tenentes,
E até mesmo astronautas.
Vão figuras,
Partituras,
Vão batutas e vão pautas.
Vão martelos,
Cogumelos,
Calçados ou de chinelos.
Vão heróis
E caracóis
Debaixo de guarda-sóis.
As meninas
pequeninas
São fadas encantadoras.
E os meninos,
muito finos
Têm piadas embaidoras.
As senhoras
Sedutoras
Dão ares de virilidade
E os senhores,
Que são doutores,
Versam feminilidade.
Os bebés
Levam bonés
Com flores de papelão.
Dobram, velhos,
Os joelhos
Para não irem ao chão.
Os sorrisos
Coloridos
Nos semblantes das crianças
Ditam mitos
Contam ditos
Trazem-me boas lembranças.
Pulam, saltam,
Bailam, dançam,
Alegres num frenesi.
Sem demora
Vou-me embora
Pois eu não pertenço aqui.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Lá ao longe

Lá longe naquela ponte
Vejo-me no passado da meninice,
Nos límpidos murmúrios da sandice.

Mais além naquela casa arruinada,
Esconde a sarça rupestre, de ser indolente
Um sorriso agreste numa boca incocente.

Ainda mais além naquela árvore
Ouço a cor do rouxinol e duma flor a fragrância
A pintar de arrebol a face da minha infância.

Muito mais além disto tudo
Para lá do horizonte, para lá do tempo
Sinto a deidade da fonte, sinto a luz do nascimento.

Sou ser pensante, aspirante a ser feliz.
Vós, entes da natureza, nesta margem meditai
Pois o rio que aqui passa é o rio que para lá vai.

Quero virar-me para trás
Para poder andar para a frente
Cantar de contente a sorte duma coisa que é sabida,
Não a certeza da morte, mas a beleza da vida.

Sérgio O. Marques

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Ao meu amor

Se o teu coração não é meu,
De meu infortúnio, a má sorte.
Já sabes que o meu é teu
Desde então até à morte.

Querer eu de minha vontade
Em te esquecer, linda dama.
É de dura adversidade
Desprezar a quem se ama.

Pela ferida que não cura
De amor inconciliável,
Rogo-te num gesto amável
Que sejas feliz na ventura.

Sofro duma saudade imensa
Porque eu não te esqueci,
Sinto no peito dor intensa
Por ainda gostar de ti.

Sérgio O. Marques

Recanto ao rio

Já não és o rio que eras,
O garrido menino que corria.
Padeces inquieto na melancolia
Que te afligem duras quimeras.

Como um indigente na amargura
Que sofre num silêncio fechado
Sonhas em te libertar do pesado
Fardo do martírio da usura.

Foi essa ganância inclemente
Que se atreveu em te eivar.
Tu que lavas tanta gente,
Quem te vem a ti lavar?

Nesta arbórea margem definho
Com a angústia de um amigo.
E para não chorares sozinho
Choro sozinho contigo.

Mesmo sem beleza que se goste,
Que se cante em tom loquaz,
Para mim sempre serás
O rio que sempre foste.

Sérgio O. Marques

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

A verdade

Num dia de ócio, numa hora de vagar
Sentei-me numa pedra na verdade a meditar.
Com alguma sapiência
E um pouco de sabedoria
Fundamentei-me na ciência,
Firmei-me em filosofia.
Dos axiomas auferi lemas,
Dos lemas, teoremas
E dos lexemas, semantemas
Na obtenção de resultados
E busca de significados.
Calculei derivadas, apliquei integrais,
Resolvi equações às derivadas parciais,
Estudei operadores num campo de vectores,
Elaborei conjuntos, construí tensores
E utilizei postulados da física matemática.
Aprendi mecânica quântica
E a arte da semântica
Depois de versar gramática.
Pensei em cosmologia,
Em química e biologia
Em lógica e alquimia
Para chegar à luz, ao fulgor.
Com tímida ingenuidade,
Com ar inepto e agreste
Pude ver que a verdade
Acaba por se condensar
Numa una gota de amor,
Seguindo os ensinamentos do Mestre.

Sérgio O. Marques

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Fim do mundo

Sangra o céu lágrimas de destruição
Cuspindo colossais colunas de fogo
E força e raiva e fúria e desolação
E incinerando multidões num rogo.
Esvicera-se da Terra o manto, a torrente
De lava do núcleo exala-se impiamente
Fervendo-se os mares com violência.
Sente-se da lua o pavor, o terror,
Os gritos, os uivos, o medo, a dor,
A onda nemésica da demência.
Rasgam-se na crosta abissais abismos
Onde se precipitam sopros de vida.
Vociferam aos ares irados sismos
Vertendo-se o sangue de ferro fundido.
Do ventre jorra plasma, fende-se a ferida
Ficando o regozijo ao pânico jungido.
Bruxuleia trémula a luz do sol
Permeando nuvens de cinza que se adensam.
Na penumbra, brutais centelhas raiam
Incendiando o vento, enxofrando o ar,
Desarraigando florestas num mole,
Irradiando e coriscando sem cessar.
Brota do solo incólume um ledo pinho
Devaniando esperança e alegria,
Um cálido gesto ou a candura dum carinho.
Não mais verá o bafo quente do dia.
Caem sucessivamente nações inermes,
Fustigam-se entes, fulminam-se germes,
Destroem-se impérios com mão fechada.
No fim nada resta, nada fica, nada!

Sérgio O. Marques

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Ter um amigo

É ter quem uma lágrima verta
Que me desanuvie vãs tristezas
E com punho, braço e força me erga
Quando só, padeço nas profundezas.

É ter de regozijo o seu sorriso
E quem em mim tenha fé e eu nele zelo
E, com uma cândida palavra, acolhê-lo
Sempre que se desacerte em seu juízo.

É estar calado num afável sentir.
É ter quem me abra o pensamento
E comprazer em me não mentir.

É ter em si a minha vontade
E a sua alegria para comigo
É ser assim, ter um amigo.

Sérgio O. Marques

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

A pandorca hedionda

Num banco estava a pandorca
Sentada. Com sonoro arquejo
Comia como uma porca.
Era razão de motejo.

Desmedida compleição
E de têmpera irascível,
Era o que a minha visão
Se me afigurava crível.

Era fria no olhar,
Insensível no trejeito
E fazia balouçar
A cruz que trazia ao peito.

Decidi interpolar
A sujeita. E com calma
Acabei por confirmar
Que a pessoa tinha alma.

Com sorriso me apontara
Enquanto estendia a mão
Que vero lhe vira a cara
Não lhe vira o coração.

É a pandorca hedionda
Quem sabe como ninguém
Que quem não tem que se esconda
Não sabe aquilo que tem.

Sérgio O. Marques

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Canto do mar

Vejo do mar a forma intensa,
Como quem vê e não pensa.
Vejo-lhe a forma, a face, a fronte
Vejo-o beijar o céu no horizonte.

Vejo-o de orgulho ostensivo
Afrontar a terra, insurgido.
Vejo-o de humildade indulgente
Lavar os pés a tanta gente.

Vejo-lhe do sol aliado
E lhe espelha a luz sobremaneira.
Vejo-lhe a lua companheira.

Na procela vira-o irado.
Agora, em vasta bonança,
Vejo-lhe a calma da esperança.

Sérgio O. Marques

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Canto ao rio

Tu, teu leito moldas serpeando
Onde te deitas a descançar.
Em ti acolhes deplorado pranto
E o vais lançar ao mar.

Segues adiante resoluto
Sem hesitar ou voltar atrás.
Querer eu ser como tu fugaz
E peremptório em meu conduto.

O teu discurso é discorrer
Por entre montes, vales e morros.
Trazes murmúrios de entristecer
De outras preces, de outros choros.

Em ti escrevo confiante
Meus pensamentos, fiel amigo.
Pode ser decerto que a jusante
Alguém os leia se os levares contigo.

De cetim te vestes são e vaidoso
Cor de prata estampa em seda fina
Passas por mim firme e viçoso
Alardeando água cristalina.

A ti pergunto, que bem trajas
De onde vens, para onde vais?
De ti não sabes, livre viajas.
Existes porque és e nada mais.

Sérgio O. Marques