sábado, 30 de maio de 2009

A vida, desenho

A vida, essa, se desenha
Em folha de papel fino
Sem esboço e sem resenha,
Desenho sem tento ou tino

Com contorno indefinido
Num padrão em desatino,
Adivinha sem sentido
De rabiscos sem destino

Cada ponto, cada traço,
Cada risco em desalinho
Cada pinta em cada espaço
Cada linha dum caminho

São da ponta do pincel
A forma que de si é ser,
São o relevo dum cinzel
São aguarela a escorrer

São, do lápis que rabisca,
Gatafunhos respigados,
São sombras de vida arisca
Carícias de enamorados

Com tintas a vida pinta
Amor em todas as cores
Traz tristeza a negra tinta
Repleta de dissabores

Se se pinta um coração
Quando se dá uma flor
Desenha-se a emoção
De um afago com calor

Se um olhar é desenhado
Num sorriso colorido
Pinta-se um quadro dourado
Na presença de um amigo

A melancolia é tinta
De núvens dum tom cinzento
E a alegria se pinta
Com a cor do firmamento

Desenho que já se fez
Quando há vida ainda se faz
Contudo, no fim talvez
Se se acaba, se desfaz

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Amor insano

Rasto luminescente de estrela cadente
A rasgar vislumbrante de luz o escuro
Firmamento é como o calor que me é ardente,
Um amor que me é voraz, de tão eloquente,
É-me candura na brandura dum terno auguro,
Sabor doce num trago amargo da dura vida.
É filamento de paixão tecido no coração,
Algo que chama, algo que clama, algo que grita
Iluminando de eco o silêncio numa canção,
Lírica de seda irrequieta no peito aflita
Por cantar ao mundo em perfeita entoação.
É erva que grassa verdejante e rosmaninho,
Estranho cavaleiro andante perdido no caminho
Na demanda da beleza de uma donzela enamorada,
Lindo sonho num pesadelo, sentimento irracional,
É magia, encantamento, condão de fada,
Onda ao vento, seara ondulante, manancial
Oscilante doirado dum tesoiro, trigueiral.
Amor insano é que me dá vida e me mata,
Que me faz forte e fraco, oiro, bronze e prata.

sábado, 23 de maio de 2009

A alegria da bicharada - Parte II

Ouve-se o telefone - Trim Trim!
O burro acorda sobressaltado,
Irritado por acordar assim!
-Quem será? - Pensa curioso.
Atende! Do outro lado fala o boi.
Pergunta-lhe, então, o burro: - Que foi?
Visivelmente furioso.
-Aconteceu algo incrível na praça.
Continua: -Passou mona por mim,
A galinha de mau humor e sem graça,
Vermelha, a ferver e a dar à asa.
Seguia ligeira para casa,
Parecia que tinha levado um murro.
-Que aconteceu? Que tinha ela?
O boi tinha ganho a atenção do burro.
Responde-lhe: -Chamei-a da janela
Mas ela continua sem me dar sinal.
Saí num rompante de casa e segui-a.
Ela nem sequer me respondia
Mas como sabes, o meu charme é fatal.
Contou-me ela que o grande amigo mocho
Que, apesar de gordo e coxo,
Gritava "eureka" e corria como um campeão
Sem lhe importar a sua admiradora galinha.
-Pobrezinha! Pobrezinha!
Ri o burro. -Afinal aí parece haver paixão,
E pelo andar da carruagem, também ciúme
Que a deixou a arder em lume.
O boi dá uma gargalhada com perspicaz observação
E diz: -concerteza, concerteza
É sabido que aí há amor repleto de beleza.
O burro faz silêncio por um instante,
Respira fundo e pergunta apreensivo:
-Será que o mocho conseguiu? Será que sim?
-Penso que sim, meu amigo!
Returque o boi hesitante.
E deve resultar daí uma alegria assim.
-Temos de falar em pessoa.
Combinam um encontro na adega social.
Não discutem por telefone por não ser coisa boa
E trazer água no bico ou algo mais especial.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Adormeço

Olho pela janela do segundo andar.
A cidade cintila com o lânguido pestanejar
De olhos ensonados. O silêncio dos luzeiros
Bruxuleantes à distância do meu vislumbre
Dão nostalgia ao estado dos meus sabores.
A persiana corrida a meio semi-cerra o deslumbre
Escondido na noite que se faz sentir lá fora.
Quedo-me aqui perpelxo. Fujo ao agora.
O tempo deixou de passar. Escuto sem respirar
O escuro da hora que se faz e adormeço a meditar.

domingo, 17 de maio de 2009

Infinito

Sento-me numa pedra e penso o infinito
Nestas margens verdejantes.
E, já sentado nesta pedra de granito,
Penso o infinito,
Que há para lá das estrelas cintilantes.
Elas, tão próximas, parecem que bem se beijam,
No entanto, tão distantes
E mesmo por tão afastadas que estejam
Parecem enternas amantes
Abraçadas no uníssono firmamento.

Rio que aos meus pés corres, aqui sentado,
Lavas os sonhos levadios para o mar
De quem aqui se senta, admirado
Com o infinito magnificente de atarantar.
Leva os meus pensamentos mais além
Onde não haja vivalma, onde não more ninguém
Entrega-os ao oceâno que os dê ao céu
Voando ao infinito onde estrelas vivem
Num imenso vazio negro como breu.
Traz-me de volta a luz do seu brilho.

Ó infinito... tu existes dentro de ti
E o que te contém é a tua existência.
Parte de ti é como tu, na sua essência,
Paradoxo que me fez sentar aqui
E meditar com grã prudência.
Quando aumentas incessante, ficas igual,
Ficas assim, ancorado nessa grandeza universal,
Sem limite que te dê forma
Sem forma que te dê fronteira
Livre de qualquer lei, ausente de qualquer norma.

Estas árvores imponentes por trás de mim
Rangem os ramos impelidas pelo sopro do vento,
Parecem ouvir, em silêncio, o meu pensamento
E cantá-lo ao infinito num frenesim.
Aqui sozinho são a minha fiel companhia,
As flores, as aves, as coloridas pedras do chão,
O gado que pasta a farta erva, épica poesia
Da natureza; somente parte do infinito são;
A outra parte, já de si é infinito
Mote do meu pensar nesta pedra de granito.

Todas as esferas se movem no seu interior,
Neste enorme infinito que intriga e espanta,
Numa perfeita harmonia celeste em esplendor
Excelsa consciência irracional que a razão quebranta.
Possui a sabedoria dos tempos, a filosofia da idade,
Infinito que tudo tem, a mentira, a verdade,
Cada riso, cada choro, o sonho, a realidade,
A ciência racional, cada trama da demência,
Desta loucura de ser o infinito que o envolve.
E tudo no infinito mexe, remexe, volve, revolve.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Mãe

Sinto saudade de ti, de trazer no coração
O tanger das olvidas histórias d'encantar
Cobrindo-me de seda macia a tua mão
Com as carícias que vivi ao t'abraçar.

O teu canto, a lembrança da tua voz qu'amima
É o meu gládio na imane desventura da sorte,
Água pura que me faz são e forte,
Estridente alvorada, estrépito que m'anima.

Ainda coras de júbilo o meu tempo obumbrado
Linda como o crepúsculo encarnado de arrebol
E junto a ti, passeio, menino, ao sol

No calor do teu regaço. O cheiro do teu cabelo
M'alenta e mesmo na cruel potestade do fado
Sorrindo digo mãe, que é um nome tão belo.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Gente, consciência

Gente que anda indiferente
Gente que passeia somente,
Gente feliz que se sente
Gente que se ri de contente,
Que partilha com outra gente
Fazendo delícias da gente
E gente a chorar tristemente;
Gente sozinha e não só,
Gente escutando outra gente,
Gente gentil e clemente,
Outra gente vil e sem dó;
É gente que transia a avenida,
Que enche a rua de vida,
Duma consciência inconsciente.

sábado, 9 de maio de 2009

Forma de ti, amor carnal

A forma, cada contorno, caída
Como excelsa arte da natureza
No chão; Contemplação da vida
Carnal suar de soberba beleza

É o teu corpo estendido na areia.
Longe o pensamento seguindo à deriva.
Apenas a forma de ti se faz sereia,
Musa da paixão, razão olvida,

Escultura elevada no fino areal
Pele macia talhada em luzente oiro
Sob a luz do sol, perfeição natural
A luzir coroa de trigo loiro.

Dormes, serenada ao som da brisa,
Serenata encantada do meu clamar.
Cada desejo meu por ti desliza
Como um rio que abraça o mar.

A forma de ti sem razão ou tino,
Apenas o teu corpo no chão deitado
Entoa numa sinfonia em desatino
Ao coração em chamas, inflamado.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

A alegria da bicharada - Parte I

Eureka! Eureka! Gritava
Eufórico o mocho na praça.
Que se passa? - Perguntava
A galinha com um ar de graça
Enquanto ele passava por ela.
Não a ouvira, de tão grande a euforia.
Gritava com tamanha alegria
Que o pardal que dormia
Acordou e se apeou à janela.
Um grande frenesi ficou instalado,
Ouvia-se um zunzum por todo o lado:
-Que lhe terá acontecido,
Porquê... tanto alarido?
-Se calhar anda bêbado ou drogado!
Alvitrava a burra mostrando-se esperta.
Returque-lhe a vaca, de si certa:
-Não o imagino assim. Ele não bebe
Nem tampouco toma drogas.
Talvez seja algum requebro.
-Ainda dormes! Vê se acordas.
Diz-lhe a burra com sorriso matreiro.
-Ele anda nos estupefacientes,
Vejo-lhe isso pelos dentes
E o meu instinto é certeiro.
Só pensas em paixões ardentes.
Mal tinha isto acontecido,
Já circulava no povo um boato.
O mocho que era considerado pacato,
Passou a ser um valdevinos.
Entretanto serena-se-lhe o contatamento
E, sem dizer água vai, volta para dentro
Não dando satsifações a ninguém
Fechando freneticamente a porta atrás de si.
Só pode ser droga, este desdém!
Reafirma a burra enquanto se ri
Perante a vaca deveras atarantada.
Esta concorda. -Ele não anda nada bem!
Não anda nada bem! Mesmo nada, nada!
A galinha, ultrajada, correra para casa
Sem sequer desconfiar que o júbilo do mocho
Lá devia trazer grão na asa
Pelo modo como voava, apesar de coxo.
Chamem o rei para tirar isto a limpo
Clama a multidão que ali se ajuntou.
Chega o rei e a sua comitiva. -O rei chegou!
Alguém repara. Desce do coche a fumar cachimbo
E trupa à porta de quem se pensava doente.
Uma hora depois sai com um ar contente
Ordenando que se disperse a multidão,
Acrescentando: -Hoje é um grande dia p'ra nação.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Paixão num beijo

Os meus lábios, os teus encontram de mansinho
Sentindo ofegantes no teu respirar
O vento a girar as velas do moínho
Que mói cada grainha do nosso amar.

Os teus, os meus beijam com aquela ternura
Que me incendeia, por dentro, de paixão,
O fogo que me queima nesta quentura
De arrepiar. És-me almejada predição.

Com cada mão percorro o teu corpo nú,
Despido e entregue a cada beijo meu
Guardando-os como segredos num baú.

Cada blandícia minha é um abraço teu.
É a tua candura que me adoça o peito
Caído sobre o teu num sublime leito.

sábado, 2 de maio de 2009

Borboleta azul

Borboleta azul, princesa do meu dormir
Foste-me sonho nos dias de menino,
Lábios finos do sorriso que me fez sorrir,
Alegria do meu viver em pequenino.

Pousaste singela na palma da minha mão.
Trazias o céu nas asas mais lindo
Onde me esqueci. Contava-te numa canção,
Conto mais belo num madrigal infindo

Escrito das palavras que não sei dizer.
Serpeavas-me a frescura de um arroio
De água fresca que não cessa de correr.

Eras-me a graça e foi então que te perdi
Arrolado e à deriva num barco salmoiro.
Lenvantaste voo e nunca mais te vi.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Voa alto

Voa alto, ao vento, além
Linda pomba branca. Então
Veloz desce e depois vem,
Vem pousar na sua mão.

Voa livre - diz-lhe assim
O céu é teu, ave tão bela.
Só não te equeças de mim
Deste pobre à janela.

Não o queria a pomba deixar
Ali entregue a si sozinho
Pois foi ele quem a foi salvar
Quando seguia no caminho.

Jazia no chão ferida,
Fundo golpe cortava a asa.
Ele, ao vê-la ali caída
Deu-lhe afago e uma casa.

Naquele dia de frio,
O peito branco, negro sujava.
O sangue que derramava
Tingia de rubro o rio.

Imóvel, na escura terra,
Quase morta de tão doente:
-Triste sorte que o fado encerra,
O desamparo de tanta gente!

Por ela tantos passaram
Com pressa de atarantar.
Outros tantos ainda olharam,
Mas só ele a foi salvar.

Macambúzio, moroso ia,
Quando a vira ali sofrente
A sentir tanta agonia
Numa dor dura e dolente.

Pegou nela com candura,
Com zelo de um grande amigo
E complacente a levou consigo.
Foi-lhe a luz nessa amargura.

Portou-a com todo o zelo,
O cuidado que lhe merecia
Dar. Ela, lânguida, ao vê-lo,
Reatou-se em alegria.

No seu colo queda seguia
Ouvindo o forte bater
Do coração e dormia
Já cansada de viver.

Abraçava-a enquanto ia
Pelo caminho ao vento irado.
Com os braços a aquecia
No calor de um abraço.

Chegado a casa por fim,
Um pequeno humilde lar
Uma cabana singela assim,
Com tabiques a amurar.

O homem que tão pouco tinha
Para a boca saciar
Dá-lhe tudo e então definha,
Passa fome para a salvar.

Tratou-lhe com dedicação
As feridas que a pungiam
E sempre que os seus olhos abriam
Sorria-lhe com coração.

Lavou-a num banho de rosas,
Com pano dum linho fino
Contando-lhe histórias ditosoas
De quando era menino.

Deitou-a numa cama de flores
Colhidas de um belo jardim
Cobriam-na folhas às cores
Com fragrância a alecrim.

De noite quando acordava
Do mais horrível pesadelo,
Ficava contente ao vê-lo
Pois por ela, ele velava.

Numa manhã de sol raiado,
Ela acordou com vigor,
O sofrimento tinha passado,
A vida já tinha cor.

Das chagas que a cobriam
Despira-se-lhe o corpo macio.
As penas de novo cresciam
Enchendo-lhe o peito de brio.

Sai pela janela airada,
Voando alto em liberdade
Como ninfa enamorada.
Sentia da brisa saudade.

Dada volta estonteante,
Com tanta satisfação
Volta p'ra trás radiante,
Vindo pousar na sua mão.

Criou laços de amor
Com aquele pobre mendigo.
Ela, S'algum dia for,
Levá-lo-á sempre consigo.

Voa - diz-lhe em triste pranto
-Voa livre é o qu'eu mais quero!
Voou livre com um canto
A despedir em desespero.

Não deseja ser entrave
Quem dela cuidou. Concerteza,
Ser livre como uma ave
Está na sua natureza.